Graciliano Ramos livre para todo o mundo

 

Nas resenhas críticas, o comunismo em Graciliano Ramos é “esquecido”. Substituem a visão socialista, a sua indignação contra o capitalismo em todos os romances, por “engajamento ideológico”.

A obra de Graciliano Ramos entrou em domínio público a partir de 01/01/2024. Mas o jurista Gustavo Martins de Almeida adverte que a integridade da obra segue protegida. “Após os 70 anos da morte, a obra pode ser livremente reproduzida. No entanto, há um direito moral que implica a integridade da obra, o seu conteúdo não pode ser alterado”. A partir daí, surgiriam alguns pontos a discutir: a obra de Graciliano Ramos não admitiria liberalidades, releituras “criativas”. Mas onde estaria o limite entre adaptar e respeitar a sua integridade? Discussão difícil. Então passemos ao mais simples.

O que importa agora é que Graciliano Ramos, na totalidade dos seus livros, está livre para ser republicado. Isso não é uma boa notícia. É uma ótima notícia. Toda a sua obra agora pode ser republicada por todas as editoras do país. E por onde começar a publicação, supondo que haja um começo de recuperação do ouro em um baú de riquezas? Talvez, pela obra de menor número de páginas, podia-se começar por Vidas Secas, o best-seller do autor. Livro garantido pela ampla aceitação e leitura de estudantes no vestibular e nos cursos universitários.

Que nada tem de regionalismo. Com Graciliano Ramos ocorre a primeira ruptura prática da empulhação do conflito “romance regionalista” x “romance brasileiro”. No dicionário, regionalismo é “caráter da obra literária que se volta especialmente para a caracterização dos costumes e tradições regionais”. Mas o que não se fala nem se diz no verbete é que “regionalismo” é uma palavra para caracterizar uma obra menor. Para sair disso, e escrevo sem intenção de piada: um autor nordestino poderia virar universal se escrevesse sobre pessoas de Nova York. (Paulo Francis já tentou ser universal por esse caminho). Caso contrário, pimba, tem carimbo de regionalista. Com São BernardoAngústia e Vidas Secas, eu quase diria, com Viçosa, Buíque e Times Square, Graciliano Ramos deu um pinote no paradoxo de ser universal falando sotaque matuto.

Na WikipédiaVidas Secas aparece como sua obra-prima. Menos, poderia ser dito. Para os leitores mais exigentes, a sua obra-prima é Memórias do Cárcere. Mas como, se o conjunto de tais volumes não é ficção? Interpõe-se aqui um obstáculo para a excelência. O que mais desejamos na ficção, na poesia? Que ela nos traga um aprendizado, uma revelação do mundo e da vida. E Memórias do Cárcere tem isso, numa altura que imagino difícil de ser alcançada na literatura nacional.

Mas são memórias de um comunista preso, eis o problema. E nas resenhas críticas, o comunismo em Graciliano Ramos é “esquecido”. Substituem a visão socialista, a sua indignação contra o capitalismo em todos os romances, por “engajamento ideológico”. E tudo se passa como se as ideias do autor, no autor, pudessem ser traduzidas, suavizadas, para a aceitação da sociedade burguesa. Isso sempre acontece. Em Lima Barreto, a indignação justa é fruto de um rancor, de um sujeito negro que queria ser branco e não foi aceito. Em Mark Twain, oblitera-se o seu pensamento anti-imperialista, e o transformam em autor para jovens, ou piadista de auditórios. Em Andersen, suavizam-se de uma maneira até criminosa as suas criações contra a injustiça do mundo. A Pequena Sereia, em Walt Disney, é um crime de lesa-autoria. Pablo Neruda virou o poeta do amor. Não poderia ser diferente com o escritor comunista Graciliano Ramos.

Mas na sua relação com o Partido nem tudo eram flores. O seu caminhando foi difícil. Seria absurdo existir um reino de paz e concórdia bíblica nessa relação. Nenhuma vida partidária é uma estufa. A sociedade e a história passam pelos partidos comunistas, onde quer que estejam.

Conta a biografia O Velho Graça, de Dênis de Moraes, que Diógenes  Arruda Câmara, em uma reunião com escritores – entre os quais estavam Astrojildo Pereira, Dalcídio Jurandir, Osvaldo Peralva e o próprio Graciliano –, teria feito, segundo o biógrafo, “uma apologia à literatura revolucionária, exigindo que os presentes se enquadrassem nos ditames zdanovistas. A certa altura, citaria como exemplo os poemas de Castro Alves, que a seu ver encaravam os problemas sociais numa perspectiva revolucionária. E o que era mais importante: com versos rimados”.

Em outro ponto da biografia de Graciliano Ramos:

“Em conversas posteriores com Heráclio Salles, Graciliano enfatizaria a aversão ao romance panfletário.

– Nenhum livro do realismo socialista lhe agradou? – perguntaria o jornalista.

– Até o último que li, nenhum. Eu acho aquele negócio de tal ordem que não aceitei ler mais nada.

– Qual a principal objeção que o senhor faz?

– Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e barrancos as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o narrador diz: ‘O camarada Stálin…’ Ora porra! Isto no meio de um romance?! Tomei horror.

– Não seria possível purificar o estilo do realismo socialista?

– Não tem sentido. A literatura é revolucionária em essência, e não pelo estilo do panfleto.

Não é de se admirar, portanto, que não tolerasse as fórmulas emanadas de Moscou. Ao tomar conhecimento do informe de Zdanov sobre literatura e arte, esculhambaria:

– Informe? Eu gosto muito da palavra, porque informe é mesmo uma coisa informe.”

A relação de Graciliano Ramos com o Partido Comunista do Brasil, nos últimos anos, foi conflituosa. Mas se destaca nessa relação, por isso mesmo, uma expressão de grandeza do escritor, que não saiu da sua escolha pelo comunismo, mesmo em luta contra a estreiteza de alguns dirigentes na época.

E voltemos ao fundamental da sua obra extraordinária, razão de vida e caráter universal. Da primeira edição de Memórias do Cárcere que tenho, da Livraria José Olympio de 1953, com fac-símiles do manuscrito e retrato do autor no desenho de Portinari, digitei com paciência há 18 anos, para publicação no espanhol La Insignia, a página imortal que narra a deportação de Olga Prestes. Está aquiMemórias do Cárcere é imensa obra, onde crescem e se registram flagrantes da flor intelectual e humana do Brasil preso sob o Estado Novo. Cito de memória: o Barão de Itararé, Nise da Silveira, Agildo Barata, Rodolfo Ghioldi, Olga Prestes, Elisa Berger, Maria Werneck, Rosa Meireles, o conjunto de militares rebelados contra a ditadura, e o narrador fundamental, Graciliano Ramos em primeira pessoa.

Em resumo, enfim: Memórias do CárcereSão BernardoAngústiaVidas SecasCartasCrônicasContos de Graciliano Ramos agora são de domínio público. Mas a sua obra sempre foi de domínio de todo o povo brasileiro.

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