Sem diálogos ou enredo, filme do maranhense Frederico Machado evoca um terror metafísico — o da solidão, da passagem do tempo, da morte e do esquecimento
Por José Geraldo Couto*, no Blog do IMS**
Escrito, dirigido, produzido e fotografado pelo próprio cineasta, o filme se compõe, em princípio, de poucos elementos: três personagens, nenhum diálogo, umas poucas locações recorrentes – um velho casarão, uma mesa de refeições, uma escadaria de pedra, um bosque, um rio. O que o torna extraordinário é o modo como esses elementos serão conjugados ao longo da narrativa.
Falar em “narrativa” talvez não seja adequado. Não há propriamente um enredo, e muito menos uma progressão. Há um núcleo dramático – um casal de idosos (Vera Leite e Buda Lira) que compartilha a mesa e a cama e recebe a visita ocasional de um homem mais jovem (Antonio Saboia) – e em torno desse núcleo se desenvolvem cenas, por assim dizer, autônomas. Passado e presente, sonho e vigília, misturam-se sem que haja diferenças de espessura entre uma dimensão e outra. Não sabemos o que veio antes e o que veio depois, o que foi apenas sonhado ou imaginado, quem está morto e quem está vivo.
Cinema tátil e espiritual
O silêncio opressivo dos personagens, a composição precisa dos planos, a iluminação tendente ao expressionismo, a sutil fusão de música e ruído na trilha sonora, tudo contribui para a instauração de uma atmosfera de terror, mas um terror sem causa imediata, um terror metafísico. Terror da solidão, da passagem do tempo, da ausência de respostas (existirmos: a que será que se destina?), terror da morte e do esquecimento. Amplificando a reverberação das imagens, acrescentando-lhes sentido, poemas filosóficos de Nauro Machado, pai do diretor, são declamados em off pelo próprio filho.
É um cinema tátil, sensorial, em que elementos primais como a terra, a água, o fogo, o leite e o sangue são dispostos como motivos musicais ou como versos de um poema, com suas rimas, seus atritos e suas dissonâncias. Ao fazer da materialidade do corpo e da paisagem natural meios de expressão de inquietações espirituais, ao buscar no físico aquilo que o transcende (literalmente o meta-físico), o cinema de Frederico Machado filia-se ao de um Andrei Tarkóvski ou ao de um Shohei Imamura, malgrado as diferenças radicais entre os três.
Jean-Pierre Melville
Em contraste com o tipo de cinema destacado no parágrafo acima, os filmes do francês Jean-Pierre Melville (1917-73), a quem o IMS dedica uma ampla retrospectiva no Rio e em São Paulo, são marcados pela leveza, pela fluência e pela ausência de solenidade. Não digo que sejam desprovidos de uma preocupação filosófica, sobretudo moral, mas sim que essa preocupação vem plasmada em uma forma cinematográfica que manipula os códigos do cinema narrativo clássico, ainda que o faça de uma maneira moderna e levemente irônica.
Primeiro cineasta francês moderno a ter seu próprio estúdio (criado em 1946), Melville declarou em entrevistas que, depois de Les enfants terribles (1950), baseado no livro de Jean Cocteau, decidiu abandonar o “gueto do cinema intelectual” e tentar fazer filmes que fossem interessantes para o grande público. Deu vazão a sua paixão pelo cinema norte-americano, em especial pelo policial noir, mas sem perder a sutileza de sua formação literária e o senso crítico de sua experiência política e pessoal.
Acabou por criar quase um gênero próprio, fundindo a agilidade narrativa americana e uma sensibilidade existencialista marcadamente francesa em obras memoráveis como Dois homens em Manhattan, Técnica de um delator, O samurai e O círculo vermelho, com seus anti-heróis ambíguos e imprevisíveis (vividos geralmente por Alain Delon ou Jean-Paul Belmondo), confrontados em algum momento com um dilema moral (em especial o tema da traição).
Não por acaso, foi inspirador e companheiro de viagem dos cineastas da Nouvelle Vague, que também fizeram, cada um à sua maneira, releituras da mitologia e da iconografia do grande cinema norte-americano. Mesmo nos filmes da sua chamada “trilogia da Resistência” (O silêncio do mar, Léon Morin, padre e O exército das sombras), ambientados na França sob ocupação alemã, a sutileza, o humor, a sensualidade e um irresistível savoir-faire marcam presença.
Melville morreu aos 55 anos, no auge de sua potência criativa. Vistos ou revistos hoje, seus filmes mantêm intactos o frescor e a verve que os tornaram únicos e incontornáveis.
Antes o tempo não acabava
Anderson trabalha na linha de produção de uma fábrica da Zona Franca e mantém uma relação conflituosa com sua comunidade de origem, que vive na periferia de Manaus. Deseja ser cabeleireiro, ter um nome de branco e dar vazão a sua bissexualidade.
O jogo entre essas instâncias – o ancestral e o moderno, o mundo natural e o mundo urbano, a tradição e as pulsões – se dá de um modo por vezes um tanto abrupto, e antropólogos criticaram duramente a abordagem da cultura indígena pelo filme quando da sua exibição no festival de Brasília do ano passado. Mas é inegável a força de suas imagens (como as iniciais, de um terrível ritual de iniciação), e a trajetória desse ser entre dois mundos não deixa de ecoar, refratar ou atualizar a de outros personagens trágicos do nosso cinema, como a protagonista de Iracema, uma transa amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, e o Carapiru de Serras da desordem, de Andrea Tonacci. O índio, de uma maneira ou de outra, continua a nos questionar e a nos colocar em crise.
*José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor.
**IMS: Instituto Moreira Salles
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