Em abril de 2003, quando estreou o filme “Carandiru”, de Hector Babenco, Fernando Antonio Moreira virou motivo de chacota entre os amigos. Afinal, o personagem Sem Chance ganhou um desfecho inédito na adaptação cinematográfica do livro “Estação Carandiru” (1999), de Drauzio Varella: interpretado por Gero Camilo, protagonizou uma das cenas mais comentadas do filme ao beijar Rodrigo Santoro, o travesti Lady Di.
Moreira, 40, reconhecido por muitos como o Sem Chance do livro, trabalhou mais de três anos como assistente de Varella no ambulatório central da Casa de Detenção de São Paulo -mais conhecida como Carandiru-, transformou-se em FF, sigla que significa “fase final”, estado dos pacientes doentes de Aids de quem cuidava e hoje em dia nome artístico que adotou para cantar com seu grupo de rap, Inciso 2, e escrever seu primeiro romance, “Face a Face com o Crime”, ainda em fase de preparação e sem editora.
Assim como seus colegas, FF viu muito de si no personagem, apesar das diferenças biográficas. “Eu me identifiquei, sim, mas nunca cheguei a perguntar ao dr. Drauzio se era eu mesmo”, diz. Varella esclarece: “Não é o Fernando, não. Os personagens estão muito bem disfarçados. Mas esse tipo de identificação é comum”.
“Não sou eu, né? Falei para os caras”, vinga-se FF ao saber da notícia. A identificação, no entanto, acontece em um nível diferente. Tendo presenciado o dia-a-dia do presídio, FF passou anos escrevendo histórias verídicas, em forma de contos curtos, assim como Varella. E, assim como Varella em “Por um Fio” (2004), baseia vários relatos em sua experiência em cuidar de doentes terminais.
Novela
A história da prisão de FF, com efeito, daria uma novela: vendedor, foi preso em 1996 ao presenciar o resgate de um cunhado por criminosos durante uma audiência em um fórum. Segundo FF, apesar de estar desarmado e de não ter participado da ação, foi preso. “Botaram cada acusação lá que desacreditei. Até triplo homicídio tinha”, diz. Sem julgamento, passou por duas cadeias até ser transferido definitivamente para o Carandiru. Há cinco anos foi absolvido em júri popular.
Enfermaria
Nesse meio-tempo, tornou-se ajudante de enfermagem e presenciou a megarrebelião de 2001 (motim de 25 mil presos em 19 penitenciárias). Começou a trabalhar na enfermaria por acaso. No terceiro dia de prisão, assistia a um jogo de futebol entre os detentos quando surgiu uma briga. “Um deles pegou um facão e acertou a cara do outro”, lembra. O atingido saiu correndo para a enfermaria. FF seguiu o rastro de sangue. “Quando cheguei lá, só tinha um atendente e o chão estava coberto de sangue.” Ofereceu ajuda e recebeu um esfregão.
Ele se candidatou ao posto de limpeza de enfermaria. Em pouco tempo, subiu ao cargo de ajudante de enfermaria.
Uma epidemia de Aids e tuberculose o levou da enfermaria para o ambulatório central, onde trabalhou com Varella. “Ele falava muito com os presos, perguntava a história, sobre a família”, diz.
Com a falta de recursos para tratar os presos, veio o improviso. “Aprendi a tratar as escaras dos presos com açúcar cristal e a pingar limão no nariz para sinusite.”
Assim como Drauzio Varella, recolheu as histórias que viveu e as que ouviu contar. “Quis escrever para protestar contra a maneira como os presos e suas famílias são tratados.”
Após aprender com as dificuldades e os códigos de sobrevivência do Carandiru, FF acabou por ciceronear um grupo de cerca de 15 integrantes do Movimento dos Sem Terra. “Eles vieram direto da delegacia para a Casa de Detenção. Cuidei deles porque estavam muito assustados”, diz.
Mesmo com FF como cicerone, o ambiente foi demais para um dos integrantes do grupo. “Era um professor. Um dia ele pirou. Gritava: “Você não quer me ajudar. Vão nos matar”. Deixei ele na cela e, quando voltei, ele tinha escrito sobre todas as paredes. Pedi permissão para colocá-lo na minha cela e dei um “sossega leão” [injeção calmante] para ele.” Quando o grupo saiu do Carandiru, o professor deu a FF seus livros em agradecimento.
Além de lembranças e histórias, o Carandiru deixou outras heranças. Uma delas foi o temor pela vida, sempre presente dentro do Carandiru, que atingiu seu ápice durante a megarrebelião. “Eu só pensava que iam invadir e o massacre [dos 111] iria se repetir. Quem salvou tudo foi o [senador Eduardo] Suplicy. Ele é 13 [maluco], o Suplicy. Entrou e disse que ia ficar lá para que o massacre dos 111 não se repetisse.”
Suplicy, aliás, tem papel de herói também no desfecho da história de FF na penitenciária. Ao alardear sua condição de preso sem julgamento, FF ganhou publicidade, mas fez inimigos. “Disseram que eu queria güentar [roubar] o presídio. Ia ser transferido para Campinas “recomendado” [acusado de mau comportamento]. Quem é transferido assim é recebido com uma surra.” Apavorado, escreveu ao senador contando sua situação.
Alguns dias após a transferência, recebeu uma carta informando que as providências cabíveis já tinham sido tomadas.
Uma semana depois, cinco anos após sua prisão, FF foi julgado- em um júri popular- e absolvido. A história tortuosa tinha um fim, não antes de um dos exemplos de descaso que o fizeram escrever “Face a Face com o Crime”. “Disseram que eu sairia de manhã. Minha família preparou almoço, todo mundo me esperando. Acredita que só saí às 18h?”
Texto preserva linguagem das ruas
“O livro começa assim, ó”, avisa FF antes de começar a declamar linhas com uma costura de rap: “Nesse dia em que eu fui preso tive um pesadelo. Chovia. Venho contando minha história desde o início até o momento em que fui preso: surpresa que o destino me preparou. Eu venho, só na mente, vivendo cada momento”.
Apesar da maneira própria de lidar com o texto, declamando trechos de memória, de maneira cantada, ele diz não formar suas frases cantando. “Busco a rima, o protesto. Com certeza o rap tem influência, mas não canto, não. A sonoridade está na cabeça.”
A linguagem falada foi preservada em “Face a Face com o Crime”. “Pode não estar muito correto, mas achei que precisava da língua das ruas para não perder a originalidade.” FF estudou até a sexta série e conta com uma rede de amigos e de colaboradores para botar suas histórias no papel.
O livro foi construído pouco a pouco em um caderno universitário, que passou pelas mãos dos amigos e terminou com uma voluntária para a digitação. “Eu me expresso bem, mas não boto pontuação nenhuma”, diz FF, que diz que só deu continuidade ao livro após a aprovação de amigos.
Apesar de contar sua experiência no Carandiru em “Face a Face com o Crime”, o livro é estruturado em contos, sem cronologia linear, tendo como ponto em comum a presença de FF nas histórias contadas -como a do prisioneiro coreano que o perseguiu implorando por analgésicos por semanas até que FF percebesse que a dor de cabeça crônica e o eterno machucado na testa do detento eram frutos de sua maneira de protestar contra períodos em uma cela destinada a doentes mentais: quebrando a louça da privada com a cabeça.
FF não acredita que a onda de filmes e livros sobre o Carandiru possa desabonar seu livro. “Há uma curiosidade mórbida sobre o assunto. Quero mostrar que não é história nem conto de fada. Eu estive lá e vivi aquilo.”
“Face a Face com o Crime” é também um apanhado de vozes oriundas de experiências na prisão, sejam de presidiários, visitantes ou autoridades. Para isso, recolheu depoimentos: participam do livro o vocalista do Racionais MCs, Mano Brown, um dos autores do hit “Diário de um Detento”; uma amiga e ex-presidiária conhecida como Bibita, para representar a voz feminina nos presídios; e o parceiro de rap no grupo Inciso 2 e sobrevivente ao massacre dos 111 no Carandiru que usa o nome artístico de Jabu. Ainda espera declarações de Drauzio Varella e Eduardo Suplicy.
Outro apêndice é um glossário com gírias usadas pelos presos, idéia a que Mano Brown se opõe. “Ele diz que todo mundo vai ficar sabendo das conversas dos manos, entendendo os códigos. Mas as gírias mudam tão rápido que não vai ter problema.” (MDV)