Cultura é uma das palavras mais complexas do vocabulário, dizia Raymond Williams. Seus significados mais longínquos associam cultura a uma ideia de domínio e poder. O cultivar das terras, da colheita, aquilo que garantia segurança e sustento. Honra e veneração (algo a ser cultuado). Por analogia, estendemos seu significado ao cultivo da mente, carregando o sentido de civilidade (alguém culto). Mais tarde, confunde-se com civilização (a cultura grega).
A antropologia enxerga cultura nos modos de vida e sistemas de valores, contrapondo a ideia de civilização (a cultura indígena). Essa tensão conceitual estende-se aos dias de hoje, com ingredientes que extrapolam os limites territoriais, religiões e ideologias, implodindo a contraposição entre erudito e popular, arte e entretenimento, mass media e comunidades de sentido.
Quero tomar essa tensão como ponto de partida para uma rápida análise sobre o mecenato privado em contraposição com o mecenato público, dos anos 90 aos dias de hoje.
O vácuo deixado pelo “Estado Mínimo” impulsionou empresas, marcas e lideranças da “elite cultural brasileira” a desenvolver um novo mecenato, caracterizado pela renúncia fiscal e pela atuação de empresas, com seus institutos e fundações, em espaços antes reservados apenas ao Estado.
Esse fenômeno concedeu um poder inédito ao setor empresarial. Se antes já dominava o campo imaginário relacionado ao uso (desmedido e irresponsável?) da mídia, agora detinha o aval governamental para atuar (em causa própria?) no campo da formação do indivíduo em sua dimensão simbólica. Geramos uma nova mitologia, baseada na sociedade do espetáculo, no império do capital, na desvalorização do nacional em detrimento de um pseudo-imperialismo global, fragilizando de forma significativa a relação do brasileiro com o Estado?
Muitas empresas valeram-se dos incentivos para valorizar e impulsionar marcas. Inúmeras outras empresas avançaram no desenvolvimento de políticas culturais de interesse público, suprindo a ausência do poder público (substituindo e ameaçando o Estado?). Ora, se as empresas podem fazer política pública, porque o Estado não pode fazer marketing cultural?
Legítimo e soberano, o governo reserva para si o poder de definir o que interessa e o que deve ser descartado na cultura brasileira. Seu crivo representa o protagonismo do Estado, revelado a partir da onipresença da logomarca “Brasil um país de todos”, obrigatória nos projetos culturais incentivados desde 2003. E torna-se um ingrediente fundamental para a definição da política de mecenato, subordinada agora aos atributos da marca Brasil (não necessariamente pública).
O balaio do financiamento cultural é rico a variado. Há o investimento em infraestrutura, pesquisa, programação de qualidade, processos educativos, relações e dinâmicas perenes e bem estruturadas nas comunidades, economia solidária e criativa. Mas há também a comunicação de marca, o evento, a promoção, o entretenimento, a publicidade. O simulacro confunde-se com o real, a cultura com a barbárie.
A privatização do mecenato público é o outro lado da moeda do mecenato privado de interesse público, que precisa ser reinventado. Precisa dialogar melhor com todas as esferas da sociedade, constituir-se em rede, promover cidadania, reforçar os direitos culturais e a liberdade de expressão, resistir às constantes ameaças dos princípios democráticos. Precisa fazer sentido ao negócio empresarial, tornando-o sustentável não apenas em relação ao planeta, mas sobretudo em relação aos seres que o habitam.
Leonardo Brant
* Texto publicado no site do GIFE, que promove o módulo 6 do curso Ferramentas de Gestão do GIFE, com o tema “Gestão de Políticas Culturais”, coordenado por Brant.
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