Do Dia do Fico ao Grito – 1822

Grito do IpirangaDois episódios históricos muito próximos, o Dia do Fico e o Grito do Ipiranga, distantes apenas dez meses um do outro, ocorridos no ano de 1822, um em janeiro o outro em setembro, marcaram simbolicamente a emancipação brasileira do domínio lusitano, encerrando 322 anos de colonização portuguesa na América. A presença da família real dos Bragança no Brasil, desde 1808, e a permanência do herdeiro do trono depois da volta de dom João VI para Lisboa, em 1821, terminaram por amortecer um movimento separatista violento e desagregador como ocorreu no restante do continente. Isto permitiu que apenas com dois gritos, o do Fico, mais baixo, e o do Ipiranga, mais sonoro, o Brasil atingisse a tão desejada autonomia sem os tormentos de uma guerra de independência prolongada e sangrenta e sem ver-se dividido em dezenas de republiquetas.

As negaças do príncipe

Ele está melhor disposto para os brasileiros do que eu esperava – mas é necessário que algumas pessoas o influam mais, pois não está tão positivamente decidido quanto eu desejaria.

Major Schäffer, recrutador de colonos e próximo a dom Pedro, 1821

Por duas vezes seguidas as Cortes de Lisboa o chamaram. Queriam o príncipe dom Pedro, regente e capitão-general do Brasil, de volta a Portugal. Por duas vezes ele negou-se a ir. Na primeira vez, deu-se o “fico”, quando ele, no dia 9 de janeiro de 1822, na varanda do paço do Rio de Janeiro, acatou o manifesto com algumas milhares de assinaturas que o presidente do senado da câmara da capital, José Clemente Pereira apresentou-lhe implorando para que ele não partisse. Na segunda vez, no 7 de setembro do mesmo ano, deu-se a independência. Momento em que o príncipe, nas margens do Ipiranga, respondeu ao apelo de um outro manifesto, este colhido por José Bonifácio em toda a capitania de São Paulo, com oito mil nomes escritos, que pedia que ele rompesse definitivamente com a Metrópole. Um grito numa sacada, outro grito, mais alto, num riacho, insuflados pelas lojas maçônicas e pelo povo, fizeram o Brasil independente de Portugal. Os dois acontecimentos produziram quadros, um de Debret, esboçado ali mesmo no calor da hora, o outro de Pedro Américo, feito muito mais tarde, trabalho de estudo, obra de atelier.

A confusão no reino

Diga-se que o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, instituído por Carta de Lei em 1815, era uma ficção e uma confusão. Até 1820, Portugal estava sob o governo de fato de um general inglês, Lord Beresford. O titular legítimo, dom João VI, o fujão, estava no Brasil desde 1808, corrido que fora de Lisboa pelas tropas francesas de Junot. Com a revolta antiabsolutista do Porto de 1820, o poder concentrara-se nas Cortes de Lisboa, instrumento dos liberais, os homens da casaca de briche, que, escaldados pelos excessos terroristas dos jacobinos franceses de 1793, preferiram manter-se obedientes a um regime com rei, lei e parlamento. Levaram oito meses convencendo o Bragança a voltar ao Tejo. Finalmente, em 26 de abril de 1821, ele reembarcou com seus quatro mil cortesãos, rapando todo o ouro e jóia depositada no Banco do Brasil. Para o Brasil, as Cortes de Lisboa, empenhadas na Sagrada Causa da Regeneração Política da Nação Portuguesa, uma vasta reforma no reino inteiro, determinaram que se organizassem juntas governativas, cada uma delas responsável por uma das antigas capitanias. O espírito descentralizador, inerente ao liberalismo, acatava, como no caso de Minas Gerais, que até direito de conceder patentes militares, cunhar moedas e mesmo lançar tributos próprios elas passariam a ter.

Um quadro assustador

O quadro político, visto de quem estava no centro-sul do Brasil, era assustador. O Nordeste já se revoltara em 1817, a Bahia, seguida do Pará e do Maranhão, as principais províncias do Norte, que em extensão perfaziam 1/3 do país, já eram regimentos rebelados que não obedeceriam o Rio de Janeiro. Sossegaram os patriotas com o Sul quando o coronel gaúcho Manoel Carneiro da Silva e Fontoura, no emocionado Dia do Fico, em nome da unidade, juntou-se “à vontade unânime dos povos do Rio de Janeiro, Minas e São Paulo”, no apoio ao príncipe.

Ao redor do Brasil a situação não diferia muito. Os vizinhos sul-americanos haviam pego em armas há mais de dez anos, gerando caudilhos em cada rincão, enquanto no México um general realista meio doido, Iturbide, depois de sufocar os revolucionários em 1821, proclamara-se imperador Augustin I.

A dissolução da unidade americana

O sonho de Bolívar em manter as antigas províncias espanholas unidas numa confederação gerara um pesadelo de golpes e contragolpes onde cada cacique local, assanhado em despotismos, afiava a espada nas costas do outro. O ex-vice-reino ibérico das Américas, depois dos levantes e amotinamentos de 1810, era um monumento vivo ao caos. Em meio a esse tumulto todo temia-se repetir por aqui, elevado ao cubo, um Haiti, onde os escravos pegaram em armas, insuflados pelos tantãs dos sacerdotes vodu, passaram no machete e no machado toda a população branca e ainda derrotaram um general de Napoleão. Para José Bonifácio e os seus, era dom Pedro ou o dilúvio. O programa era fazer daquele “príncipe do Mundo Novo” imperador do Brasil, manter o país recém-liberto unido em torno da coroa, os escravos no eito e os portugueses na Europa. A solução era nacionalizar o herdeiro luso. Este, por sua vez, já seduzia-se pelo que andavam a cantarolar pelas ruas:

“Para ser de glórias farto,/ Inda que não fosse herdeiro,/
Seja já Pedro Primeiro… Seja nosso Imperador/
…Mas nunca nosso Senhor”.

O hino e o grito

No primeiro grito, o príncipe Pedro disse que não ia, no segundo foi o Brasil que se insurgia. Ao voltar de Santos para São Paulo, no dia 7 de setembro de 1822, depois de seu périplo de mais de 600 quilômetros pelo interior fluminense e paulista, por onde cavalgara por 24 dias, refeito das emoções do riacho Ipiranga, que se deram às quatro horas da tarde, desarreiando-se, inquieto, compõe o Hino da Independência. Ao adentrar a noite no camarote do teatro, não muito distante do Colégio dos Jesuítas, primeiro prédio da capital paulista, da platéia alvoroçada partiram os gritos “Independência ou Morte!” O varão dos Bragança, bom músico, dominando o fagote, o piano, a viola e o rabecão, com voz de tenor, vencera a parada no grito.

Leia mais aqui…

Pedro Américo e a recriação do Grito da Independência

Compartilhar: