Diretora de Democracia em Vertigem afirma que ver “de perto” o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff foi uma experiência “deprimente e única”
Em entrevista à edição desta semana da revista Veja, a cineasta Petra Costa afirmou que ver “de perto” o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff foi uma experiência “deprimente e única”. Seu filme Democracia em Vertigem – que reconstitui a escaldada golpista e os ataques ao Estado Democrático de Direito – acaba de ser indicado ao Oscar de Melhor Documentário.
Sobre as reações extremadas ante a indicação, Petra diz que o lançamento do longa pela Netflix, em 2019, já havia provocado divergências apaixonadas. “A maioria das pessoas dizia que estava chorando, era uma espécie de catarse. Recebi críticas da esquerda e da direita, mas também mensagens de pessoas que haviam apoiado o impeachment”, afirma a cineasta, que revela uma curiosidade inusitada: “Apesar da polarização das redes, deputados do PSDB e até do PSL me escreveram para contar que tinham amado o filme. Um, do PSL, disse que fez questão de mostrá-lo a todo o gabinete”.
Veja: Como nasceu Democracia em Vertigem?
Petra Costa: O filme nasceu de um susto. Um dia decidi filmar uma manifestação e fiquei em choque ao ver que muitos estavam pedindo a volta da ditadura militar. Nesse dia, jovens vestidos de vermelho – que também protestavam contra Dilma – tiveram de ser escoltados pela polícia. Eu quis entender aquilo, entender de onde aquele ódio tinha surgido. Nossa equipe se dividiu entre os protestos de rua, o Congresso, e, um tempo depois, conseguimos também filmar os bastidores do palácio. Eu queria captar o pulso da sociedade em suas diferentes camadas.
Veja: A ex-presidente Dilma Rousseff declarou que a indicação é a “denúncia do golpe no Oscar”. Democracia em Vertigem é, afinal, o “filme do PT” no Oscar?
PC: Um dos mais importantes documentários americanos se chama Primary e retrata as primárias antes da eleição de Kennedy. Nunca vi ninguém comentar que é um filme pró-democratas. No caso de Democracia em Vertigem, conta-se a história de um período político do país por meio da história da minha família. Expus ali a história dos meus avós, dos meus pais e a minha para que o espectador tivesse em mãos todas as informações de que ele precisava para entender meu ponto de vista. Afinal, todo documentário é um ponto de vista. Ao longo do filme, sou honesta sobre minhas decepções, minhas dúvidas e minha esperança.
Veja: As reações extremadas a surpreenderam?
PC: Nos primeiros meses depois que o filme foi lançado, saía um tuíte por minuto sobre ele. A maioria das pessoas dizia que estava chorando, era uma espécie de catarse. Recebi críticas da esquerda e da direita, mas também mensagens de pessoas que haviam apoiado o impeachment. Apesar da polarização das redes, deputados do PSDB e até do PSL me escreveram para contar que tinham amado o filme. Um, do PSL, disse que fez questão de mostrá-lo a todo o gabinete.
Veja: Sua proximidade com Lula e o PT é atestada pelo fato de Lurian, filha do ex-presidente, ter vivido com sua família em Paris nos anos 90. Até que ponto a intimidade com Lula abriu as portas?
PC: Logo depois que minha irmã Elena morreu, aos 20 anos, minha mãe queria ir para um lugar onde não tivesse memórias dela, e escolheu fazer um mestrado em Paris. Nessa mesma época, ela tinha ficado sensibilizada com a exposição da Lurian, tão nova, na eleição de 1989, e a convidou para ir conosco. Minha mãe não era próxima do Lula, o convite foi feito por meio de uma amiga em comum. E ela topou. Nós nos vimos pouco desde que voltamos, mas o carinho permanece. Eu só tinha 8 anos na época e não cheguei a conhecer o Lula, apenas o vi falar em público algumas vezes. Em 2016, escrevi uma carta em que pedia uma entrevista. Soube depois que ele nunca a leu. Passei 24 semanas insistindo para gravar até ele topar, depois de um dia em que fiquei dez horas plantada no instituto dele.
Veja: A exposição confessional de sua vida é uma marca de Democracia em Vertigem. Por que se abrir tanto diante das câmeras?
PC: Minha formação é em antropologia. Por isso, sempre duvidei da tentativa de retratar objetivamente a realidade. Quando comecei a fazer filmes, decidi que o mais honesto seria assumir a imperfeição do meu olhar. Além disso, também sentia falta de ver na tela o que eu vivia como adolescente e mulher. O cinema me parecia excessivamente machista, salvo raras exceções. O lema feminista de que “o pessoal é político” inspirou muito meus primeiros filmes. Com Democracia em Vertigem, a equação se inverteu: quis investigar como o político é pessoal. E acredito que esse é um sentimento comum a todos no Brasil hoje. Afinal, a convulsão social rachou famílias, revelou o caráter das pessoas, distanciou amigos. Nossa sociedade foi mexida em suas entranhas. Muito do que vimos não era bonito. Mas era real.
Veja: Há especulações sobre a presença da ex-presidente Dilma na festa do Oscar. Está em seus planos levar sua personagem principal à premiação?
PC: Foi uma grande diversão ver a reação das pessoas nas redes sociais. Eu rio muito, tanto dos memes de apoiadores como de críticos. Achei engraçado ver que muitas pessoas encontraram na especulação sobre a ida da Dilma à cerimônia uma forma de reparação histórica.
Veja: Nos tempos do impeachment, especulou-se que Dilma só havia ido a seu julgamento no Senado para ter seu discurso filmado para o documentário. É verdade?
PC: Só quem não conhece a Dilma acreditaria que ela toparia ser dirigida para um documentário. Levei meses para conseguir entrevistá-la. Quando o dia finalmente chegou, achei que seria bonito filmá-la nos arcos do Palácio da Alvorada, e montamos o equipamento lá. Mas, quando ela apareceu, ficou indignada e quase foi embora. Disse que o impeachment não era algo bucólico. Por fim a convencemos, e ela conversou com a gente. Foi uma entrevista curta e formal. Demoraria ainda meses para conseguir entrar num carro com ela.
Veja: O presidente Bolsonaro não assistiu ao filme, mas disse que é “bom” para quem gosta de “comida de urubu”. O que pensa do comentário?
PC: Ele disse que não viu o filme. Assim, não acho que preciso comentar. Quero chamar atenção para o fato de que historicamente a extrema direita sempre apelou para expressões como essa, comparações com animais, para retirar a dimensão humana do opositor. Quando o caráter humano do adversário é apagado, fica mais fácil qualquer violência ser aceitável. Um dos pilares da democracia é tratar o adversário com respeito. Espero que isso possa ser resgatado no Brasil.
Veja: Como foi a experiência de ver de perto o processo de impeachment da ex-presidente?
PC: Fogos de artifício marcaram cada etapa do processo. A condução coercitiva de Lula, o dia 17 de abril, a posse de Temer e a eleição de Bolsonaro. Eles vinham anunciando o raiar de um velho dia. Neste ano novo, percebi quanto esse ruído havia me traumatizado. Eu nunca tinha entrado no Congresso Nacional. E de repente estava ali, assistindo em primeira mão aos bastidores de uma crise que mudou nosso destino. Foi uma experiência única. Deprimente e única.
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