Na segunda-feira da semana passada (27), a repórter Isabela Scalabrini, da Globo, reportou as enchentes em Minas Gerais. Passando por Raposos, município a 40 km de Belo Horizonte, ela parou numa rua entulhada de sofás, guarda-roupas, a carcaça de um fogão, estrados de cama e um monte de outros objetos domésticos. “Às vezes faltam até palavras pra gente descrever outras cenas que a gente vai vendo pelo meio do caminho”, disse Isabela. Para sorte da repórter e dos telespectadores, enquanto ela desfalava a câmera mostrava a tremendonheira que os moradores haviam perdido no meio da lama.
Conto isso para dizer que sempre achei estranho o uso, por parte de jornalistas e escritores, das palavras “indescritível”, “inenarrável”, “inexprimível”, “indizível” ou “inefável”. No teclado ou ponta da bic de um narrador, termos quetais quase sempre indicam incompetência técnica. Se o cabra não pode descrever com palavras as cenas que testemunha, sonha ou inventa, talvez fosse melhor trabalhar com pintura, música ou cinema, ora pipocas!
É óbvio que nem sempre você encontra as palavras adequadas para exprimir as ideias ou as imagens, sons e outras sensações captadas pelos sentidos, sendo obrigado a recorrer aos dicionários ou ao Google. O naturalista Charles Darwin se valeu do catálogo publicado em 1814 pelo artista escocês Patrick Syme, o Werner’s Nomenclature of Colours, para retratar as cores das rochas, águas, céus, plantas e animais que foi descobrindo ao longo da viagem exploratória do Beagle, entre 1831 e 836. Na lista de 110 cores compiladas por Syme, o laranja marrom (Brownish Orange) é comparado ao tom do “topázio do Brasil”.
Catacrese
Contadores de histórias desde Homero buscam metáforas (analogias), catacreses (extensão de significados) e outras figuras de linguagem para dar conta do ofício. Além do mais, os grandes artistas da narração sempre inventam novocábulos para descrever o Universo, ainda que idealizado.
O escritor Bill Bryson (O mundo é um palco) informa que o Shakespeare cunhou ou fez o seu primeiro uso registrado em inglês, de 2.035 palavras. Dessas, cerca de 800 colaram, sendo correntes até hoje. Entre elas, abstemius, antipathy, critical, frugal, extract, horrid, vast, hereditary, excellent, dwindle (definhar), eventful (acidentado), barefaced (de cara limpa), assassination, lonely (solitário), leapfrog (pular carniça), well-read (bem-informado) e “incontáveis outras (inclusive a palavra ‘incontáveis’ [countless])”, diz Bryson.
O Bardo inventou também numerosas expressões, como to be in a prickle (estar em apuros), the milk of human kindness (a essência da bondade humana), pomp and circumstance (pompa e circunstância), beggar all description (ser inacreditável) e bag and baggage (armas e bagagens, que eu mesmo prefiro traduzir como “bagos e bagagens”).
Nonada
Entre os brazucas, o maior inventor de palavras foi o mineiro da roça João Guimarães Rosa, valendo-se de sua proficiência em alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto e um pouco de russo, além da capacidade de ler sueco, holandês, latim e grego (“mas com o dicionário agarrado”), e ainda de seus conhecimentos gramaticais do húngaro, árabe, sânscrito, lituano, polonês, tupi, hebraico, japonês, tcheco, finlandês e dinamarquês. Um monstro!
A propósito, a primeira palavra do Grande Sertão: Veredas, “nonada” (nada, ninharia, bobagem, bagatela, nuga) não é uma criação do João. Já existe em português há séculos e está registrada na página 54 da terceira parte dos Sermões do Doutor Diogo de Payva d’Andrade, no Sermão da Sexta-Feira da Samaritana, impressos em Lisboa em 1615. Ainda assim, o resgate de um termo tão antigo só mostra a genialidade do João.
Em 2001, a professora Nilce Sant’Anna Martins, da USP, lançou O Léxico de Guimarães Rosa, compilando 8 mil palavras que o criador do jagunço Riobaldo Tatarana forjou ou utilizou de maneira criativa, surpreendente, imaginosa, “de valor estilístico mais acentuado, (…) com alguma expressividade particular, como neologismos, arcaísmos (…), empréstimos, onomatopeias, palavras populares, regionais ou eruditas”, disse a Nilce.
Abaixo a preguiça!
Em 1965, na entrevista ao crítico alemão Günter Lorenz, Guimarães Rosa disse que “o mais importante, sempre, é fugirmos das formas estáticas, cediças, inertes, estereotipadas, lugares comuns etc. (…) Não procuro uma linguagem transparente. Ao contrário, o leitor tem de ser chocado, despertado de sua inércia mental, da preguiça e dos hábitos”.
É notório que a preguiça intelectual e os problemas de interpretação de textos estão entre os problemas mais sérios do Brasil, ao lado da fome e dos hábitos escravagistas. Como mudar a realidade se as pessoas não conseguem sequer analisá-la de maneira adequada?
A gente que quase que nada não sabe, mas desconfia de muita coisa, devia adotar como programa de ação, o quanto antes, essa fala aí do Guimarães Rosa! Uma questão de opiniães, é claro!
Jornalista
Fonte: Brasilários
Faça um comentário