Certas analogias podem ser bastante produtivas, contudo, devemos estar atentos para pensar seus limites. Devemos estar prontos para rir delas, para sermos irônicos e secar os excessos de nossas metáforas.
Richard Rorty, explicando o seu behaviorismo epistemológico – ou seja, sua idéia de que o conhecimento advem de necessidades práticas, numa relação de estímulo-resposta – compara nosso cérebro a um hardware e a cultura a softwares. Essa analogia me parece bastante frutífera e nesse texto tentarei ampliá-la pensando no fenômeno do software livre e na filosofia de Rorty.
Rorty questiona a crença comum na filosofia em entidades que fornecraim ao filósofo um acesso privilegiado à Verdade. A Razão não seria mais do que um substituto para Deus: a necessidade desses termos atemporais e universais sustentaria a pretensão dos filósofos de se colocarem acima da sociedade, “revelando”, “espelhando”, “representando” a Realidade Tal como Ela É. Os racionalistas querem nos elevar, os românticos querem ser profundos: todos acham que podem revelar a Verdade. Rorty acredita que a filosofia seria muito mais útil se ao invés de tomar uma perspectiva vertical, tentasse ser horizontal, ou seja, tornar-se conversacional. Mas ele não pode “provar” isso: só pode contar histórias sobre as vantagens de sua posição. Se tentasse provar cairia no mesmo jogo… Uma cultura conversacional seria também repleta de narrativas, seria uma cultura literária.
Alguns temem que sem a marca da Razão cairiamos em um relativismo sem regras que geraria um colapso, um caos insustentável, onde nada mais teria valor. Pois bem, transportemos essa situação para outro campo.
Muitos acreditam que sem uma marca paga, sem o padrão-Windows, nenhum software seria confiável: a idéia de código aberto geraria caos, não haveria qualquer controle possivel sobre os resultados dessa brincadeira irresponsável. O que dizer então dá idéia de uma enciclopédia aberta e participativa, em que qualquer um poderia mexer em seu conteúdo? Se não separamos os a(u)tores dos que devem ser iluminados pelas luzes da razão – e do espetáculo – a própria idéia de conhecimento cairia por terra!
Podemos rir, juntamente com Rorty, dos que temiam que a democratização seria sinônimo de caos. Podemos aprender a lição que o software livre traz, assim como as enciclopédias abertas (como a Wikepédia ), ou mesmo sites participativos (como o Overmundo ) e… o que mais pode vir…
Rorty pretende substituir a razão pela imaginação: essa é a conseqüência principal de pensarmos numa cultura aberta em que ninguém se auto-elege dono da verdade. A objetividade dos que pretendem que algo seja universal e atemporal, não passa de certa solidariedade profissional dos que são guardiões da Razão, o mesmo tipo de estrutura de crença que manteria uma Igreja funcionando.
Para Rorty poderíamos construir outro tipo de solidariedade conversacional, em que o que chamariamos de racionalidade seria a capacidade de adaptabilidade, tomada em termos darwinianos.
Uma vantagem evidente do software livre é a de que, por ter o código aberto, esse pode ser adaptado para funções específicas de maneira muito mais segura que um programa de código fechado: se você pretende ter maior segurança sobre o programa que usa, o melhor é conhecer tudo sobre ele e não ficar nas mãos de alguns iniciados. Pois bem, uma filosofia aberta e conversacional é o que precisamos se queremos ter uma sociedade democrática de cultura aberta.
Os limites dessa analogia são algo que também deve ser destacado. Nem todos que usam a internet participam ou têm condições de participar do jogo conversacional que ela possibilita. Sem certas condições econômicas e sociais é dificil pensar em participação democrática. Mais: a Utopia de Rorty é tomada muitas vezes como conservadora. Por quê? Por questões de hegemonia: quem decide onde termina o diálogo e começa a imposição?
Pensemos no nosso sistema de propriedade, que também remonta a Platão, em sua idéia de preservar o que é de cada qual excluindo os outros. Pois bem, precisamos de outro sistema de propriedade aberto, que permita a conversação… Contudo, muitos conversam até certo ponto: depois se impõe no antigo sistema de propriedade.
Pensemos em cantores que se lançaram a partir do mercado de CD pirata, como a dupla goiana Bruno e Marrone, e hoje fazem sucesso em grandes gravadoras… em versões de softwares livres que são vendidas…etc. A questão da hegemonia se apresenta então: a conversa vai até que ponto? Onde começa o silêncio? Quem participa do diálogo? Garantida a hegemonia quem garante que não trocaremos de “marca”… Tenho questões.
Mas acho que o pior é quando não existe nem a possibilidade de abertura. Precisamos abrir caminhos para construir um futuro melhor. Conversemos então…
http://www.overmundo.com.br/overblog/cultura-livre-e-filosofia-aberta-1
Marcos Carvalho Lopes