Chico Buarque ironiza “rara fineza” de Bolsonaro por não sujar prêmio Camões

 

Escritor ressaltou ainda que honraria é um desagravo a artistas brasileiros “humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”

“Reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula”, disse, sob aplausos, o compositor e escritor brasileiro Chico Buarque ao receber, nesta segunda-feira (24), com quatro anos de atraso, o Prêmio Camões.

A homenagem, a maior da literatura em língua portuguesa, é concedida anualmente pelos governos do Brasil e de Portugal a autores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Chico foi agraciado em 2019, mas Jair Bolsonaro se negou a assiná-lo.

A cerimônia, realizada no Palácio de Queluz, contou com as presenças dos presidentes brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e português Marcelo Rebelo de Souza, do primeiro-ministro de Portugal, Antonio Costa e da ministra da Cultura do Brasil, Margareth Menezes, entre outras autoridades e personalidades.

Em seu discurso, Chico salientou que “valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido”.

No que se refere ao meu país, destacou, “quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte”.

Chico disse, ainda, que o prêmio estava sendo recebido por ele “menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”.

Ao iniciar sua fala, o compositor brasileiro homenageou seu pai, Sérgio Buarque de Holanda, lembrando o amor que herdou pela língua portuguesa, bem como sua influência política.

Chico também falou da formação do povo brasileiro, recordando trecho de uma de suas canções: “O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco”.

 

Ataque à cultura

Presidentes Lula e Marcelo Rebelo de Souza assinam diploma. Foto: Ricardo Stuckert

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva apontou a satisfação de estar, naquele momento, corrigindo “um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos. Digo isso porque esse prêmio deveria ter sido entregue em 2019 e não foi. E todos nós sabemos porque. O ataque à cultura em todas as suas formas foi uma dimensão importante do projeto que a extrema-direita tentou implementar no Brasil”.

Lula destacou ainda que “se hoje estamos aqui para fazer essa espécie de reparação e celebração da obra do Chico é porque finalmente a democracia venceu no Brasil. Não podemos nos esquecer que o obscurantismo e a negação das artes também foram marcas do totalitarismo e das ditaduras que censuraram o próprio Chico no Brasil e em Portugal”.

 

Para o presidente, o prêmio  “é uma resposta do talento contra a censura, do engenho contra a força bruta, um prêmio escolhido por unanimidade por jurados de Portugal, do Brasil, de Angola e Moçambique; um prêmio da língua portuguesa que nos une mesmo quando barreiras geográficas ou fronteiras nos separam. Hoje, já é outro dia”.

Já o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza, comparou a entrega do prêmio a Chico Buarque com o momento em que o músico canadense Leonard Cohen foi questionado sobre o Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan. Naquela ocasião, Cohen disse que era como dar ao Everest a medalha por ser a mais alta montanha do mundo, algo que seria óbvio e redundante. Para ele, premiar Chico também tem esse caráter, dada a grandiosidade de sua obra.

Rebelo de Souza também falou sobre a demora da entrega: “Dir-se-á que quatro anos é uma longa espera para concretizar uma evidência; não importa chorar pelo leite derramado”, disse, em referência ao livro “Leite Derramado”, lançado por Chico em 2009.

O prêmio de 2019, apontou, “é entregue pessoalmente em 2023, mas ninguém cuidará de saber a que ano diz respeito; diz respeito a todos os anos. Chico esperou quatro anos para o receber em mãos e nós esperamos quatro anos para o entregar em mãos como os admiradores esperam aquele que admiram; como os amigos esperam uns pelos outros”.

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