Antonio Grassi
Dois atos legais recentes devem mudar a tortuosa história da gestão pública da cultura no Brasil, fazendo com que o país entre, finalmente, na era das políticas de estado em favor do desenvolvimento cultural. Ambos ocorridos em agosto deste ano.
Um deles foi a promulgação pelo Congresso do Projeto de Emenda Constitucional que institui o Plano Nacional de Cultura – que agora compõe à Constituição no parágrafo terceiro do seu artigo 215 – de validade plurianual, destinado a estabelecer as diretrizes norteadoras de todas as ações e investimentos do Governo Federal nesta área.
O outro ato efetivou-se com a recente edição de um decreto do Presidente Lula, proposto pelo Ministro Gilberto Gil, que cria o Sistema Federal de Cultura, definindo o caminho para que esteja assegurada a mais ampla participação da sociedade na elaboração da proposta de Plano (PNC), a ser enviado à Câmara e ao Senado, bem como na gestão e na definição das prioridades, metas e estratégias a serem perseguidas pela União.
Desde 2004, um dos preparativos mais importantes para este momento havia sido desencadeado pelo Ministério da Cultura através da Funarte com a reunião de artistas, produtores e entidades em vários estados da federação buscando a organização das Câmaras Setoriais da Cultura. Estas, por sua vez, tiveram sua implantação efetiva a partir de fins de maio último, abrangendo as áreas da música, teatro, dança, circo e artes visuais, todas elas conduzidas pela Funarte, e ainda do livro e leitura, esta conduzida pela Biblioteca Nacional.
A proposta de criação das câmaras baseou-se na experiência bem sucedida nas áreas da indústria, comércio e agricultura, hoje já difundidas para vários outros campos da atividade social, inclusive para a esfera judicial que possui, entre outras, a Câmara Setorial dos Arquivos do Judiciário. A iniciativa governamental de fomento ao surgimento das câmaras tem pelo menos duas metas centrais.
A primeira é conquistar imediatamente um espaço de diálogo mais permanente e organizado, onde possam ser debatidas e pactuadas as prioridades de cada setor com foco nas cadeias produtivas e criativas de cada segmento. Ou seja, buscar resultados de interesse comum a curto e médio prazos, no enfrentamento dos principais problemas que emperram as atividades.
A segunda, aprofundar o debate sobre as estratégias para o desenvolvimento destas áreas, a organização de uma política nacional que possa definir de modo mais qualificado – também pelo método do pacto entre os diferentes setores de cada área artística – o papel do Estado. Neste caso, diretrizes e linhas de ação que deverão constar no Plano Nacional de Cultura e ter caráter mais permanente, ultrapassando o tempo dos mandatos eletivos.
Desde sua implantação, as câmaras setoriais da cultura já realizaram mais de uma dezena de reuniões presenciais, com representação nacional de todos os segmentos envolvidos em cada área. No caso da música, por exemplo, a reunião de sua câmara setorial que debateu o polêmico tema dos direitos autorais configurou-se num encontro histórico, colocando cara a cara pela primeira vez os detentores dos direitos – músicos, compositores e autores – e os atuais operadores do sistema de arrecadação, o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), as associações de direitos e outras entidades interessadas no assunto.
Temas como a revisão da Lei do Artista (6533/78), da volta do ensino das artes e da excepcionalidade para que as produtoras culturais possam se enquadrar no sistema Simples de tributação – e que envolvem outros ministérios que não o da cultura, mas que são fundamentais para o desenvolvimento artístico nacional, também têm sido objeto das pautas, gerando novas formulações e alternativas.
Uma concertação realmente significativa, que reorganiza a ação estatal brasileira numa das esferas mais importantes da vida nacional, de onde o país tem sacado não apenas os valores simbólicos que dão sentido à civilização que estamos construindo no Brasil, mas de onde também provém o sustento de inúmeras iniciativas comerciais, industrias e de serviço, fonte de emprego, renda e distribuição da riqueza.
Passos fundamentais para a democratização e racionalização do investimento público nacional e para a potencialização da cultura como poderoso instrumento transformador da vida brasileira, gerador de novas energias para a inclusão social e para o desenvolvimento sustentável.
Antonio Grassi