Breve História da Arte Reclusa no Brasil –

Mara E. Weinreb

          Esta dissertação aborda questões sobre a imagem e a desrazão construídas no contexto da história da Arte Reclusa no Brasil, desde os anos vinte do século passado, até o ano de 2002. Nossos fundamentos teóricos têm como origem as pesquisas dos pioneiros nestes estudos no Brasil, como Osório César, Nise da Silveira e Mario Pedrosa, que estimularam e apoiaram as atividades dos ateliês de arte em instituições psiquiátricas, com debates, e publicações, colaborando assim para um campo de conhecimento, conhecido como Arte e Loucura. A relevância da nossa proposta é dada pelo destaque que se confere, hoje aos espaços que lidam com arte em instituições da saúde, da educação e da cultura, que propiciam a reabilitação pessoal e social dos indivíduos portadores de necessidades especiais, discutindo as limitações dos indivíduos com prejuízo mental, como capazes de desenvolver uma expressão própria, e dar sentido a sua produção, no momento em que estabelecem uma comunicação com o mundo.


Sem título. Tinta de impressão e anilina sobre papel.
24,5cm x 34cm. Década de 60.

          Nosso interesse pelo tema da imagem e desrazão consolidou-se em 1995, quando recebemos o convite para a exposição CDE Revivências 34 anos, com destaque para a produção plástica de Manoel Luiz da Rosa, aluno mais antigo e portador de necessidades especiais, do Centro do Desenvolvimento da Expressão- CDE, órgão da Secretaria de Estado da Cultura, do Rio Grande do Sul.

          Ao buscarmos uma aproximação com o imaginário dos portadores de necessidades especiais, procuramos também resgatar a trajetória da Arte Reclusa no Brasil, uma história não oficial, pouco presente nos compêndios de história, tanto na área das artes como na área da saúde.

          Fatos marcantes foram às iniciativas dos psiquiatras Osório César, com a publicação do livro A Expressão Artística dos Alienados, em 1929, e Ulisses Pernambucano, no Recife, modificando o Serviço de Assistência ao Psicopata, como diretor do Hospital da Tamarineira, em 1930, quando terminou com os calabouços, camisas de força e criou oficinas de praxiterapia. Este período também foi caracterizado por perseguições políticas e ideológicas. Com a instalação da ditadura getulista em 1930, as convicções e atuações de Osório César, Nise da Silveira e do crítico de arte Mário Pedrosa, os levam à prisão e ao exílio. 


Sem título. Guache sobre papel.
34cm x 49cm. Década de 60.

          Com seu retorno, retomam-se as atividades e a médica psiquiatra Nise da Silveira inaugura em 1946, a seção de Terapêutica Ocupacional, no Centro Psiquiátricos Pedro II. As atividades dos ateliês de arte nestas instituições psiquiátricas acreditavam na livre expressão plástica bem como o conhecimento do uso de técnicas e materiais artísticos: Raphael com nanquim, Emidgio com guache, Aurora Cursino com óleo s/ tela, desenhos de Carlos Pertius e outros. Muito destas ações foram originadas das idéias e debates ocorridos na semana de Arte Moderna, suas sementes brotaram tanto no campo das artes, da arte-educação como na saúde.

          No Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, em 1950, era inaugurada a Escola Livre de Artes Plásticas-ELAP, definindo assim os principais movimentos em relação aos alienados e sua de expressão plástica.São inaugurados o Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952, e a Casa das Palmeiras, em 1956, instituição sem fins lucrativos, com objetivo de promover a reabilitação dos egressos dos hospitais psiquiátricos, bem como evitar sua reinternação, que tinha por princípio dar continuidade as atividades desenvolvidas nas oficinas da Terapêutica Ocupacional em Engenho de Dentro.

          As dificuldades enfrentadas pelo Museu do Inconsciente para sua manutenção, leva à criação da Sociedade de Amigos do Museu do Inconsciente- SAMI, e a ELAP, no Juqueri, por falta de apoio e verbas em 1960 se extingue. As ações de arte nos ateliês se esvaziam, e perdem sua força nas instituições em geral. È um período onde os discursos e debates silenciam. Surgem os grandes centros psiquiátricos, promovendo as internações e tudo o de mais moderno para a doença mental.


Sem título. Guache sobre papel.
34cm x 49cm. Década de 60.

          Podemos dizer que, a partir do ano de 1980, inicia-se uma nova fase para a Arte Reclusa, um período de retomadas e de consagrações, em especial quando a obra de Artur Bispo do Rosário, é transmitida para todo o país pela rede Globo de televisão. Adentrando as celas fortes da colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, se depararam com a “recriação do mundo” o Manto da Apresentação, as assemblages, a Cama Nave, miniaturas, estandartes, bordados, terminando assim com seus 50 anos de reclusão, para transformar-se em um patrimônio cultural.

          Era o momento em que o mundo se defrontava com questões como as de gênero, raça/etnias, inclusão social, cidadania, dentre muitas outras. Estes discursos ocuparam e se mantém até hoje em vários campos do conhecimento, muito estimulados pelos Estudos Culturais, iniciados na Inglaterra.

          O campo das artes vivia momentos de vanguarda com rompimentos significativos que estabeleciam, entre outros conceitos, o fim das grandes narrativas, surgindo discursos urbanos e locais. Após a descoberta de Bispo do Rosário, merecem especial destaque as iniciativas como a inauguração da Arte Incomum na XVI° Bienal de São Paulo, em 1981, quando se retoma também os debates sobre arte e loucura, e as idéias anti-manicomiais, que, nos anos 60, já surgiam no mundo, sob a influencia de Laing, somente na década de 80 começam a ser discutidas no Brasil.


Sem título. Giz pastel e caneta hidrocor sobre papel.
67cm x 97cm. Década de 70.

          Dentre estas iniciativas, Maria Heloisa Ferraz, pesquisadora e arte-educadora, resgata o trabalho de um pioneiro, inaugurando, em 1985, o Museu Osório César, no Juqueri, com a recuperação das obras dos artistas que freqüentaram a ELAP, cria-se um acervo, estabelece-se um espaço para exposições e recuperam-se também as oficinas de arte que estavam abandonadas.

          É o tempo de grandes eventos nas artes plásticas e, das reformas nas instituições totais, com seu término já anunciado, surgem os serviços de atendimento ao portador de sofrimento psíquico, que passa a ser o seu usuário de seus ateliês de arte, que proliferam pelo país. Agora tratada em centros menores e com o predomínio de uma abordagem social, a doença mental passa a ser questão de todos, não mais exclusividade de um ou outro campo do conhecimento.

          É neste contexto que inserimos para discussão a produção plástica de Manoel Luiz da Rosa, com um acervo em torno de 1100 trabalhos, até o ano de 2002. Este foi sem dúvida um dos momentos mais exigentes da pesquisa, pois somente com uma imersão profunda em sua produção e com uma atenção de observadora e ouvinte, retomando muitas vezes a seleção, chegamos aproximadamente a 500 trabalhos para definir uma amostra constituída por 118 trabalhos.


Sem título. Guache sobre papel.
49cm x 67cm. 1969.

          As características da produção de Manoel, mesmo reclusa, aproximam-se da arte contemporânea e por ela transitam. O acúmulo, a repetição de figuras, o estar junto, o misturar-se e reproduzir são ações do corpo, Até o presente momento Manoel parece percorrer os caminhos da arte, naif, bruta, e da desrazão, Mesmo que sua produção possa, de início remeter à arte bruta, como resultado de trabalho espontâneo, de cunho pessoal, descomprometido com exigências sociais, sabemos que Manoel adquiriu ao longo de sua trajetória, conhecimento sobre o uso e manejo de técnicas e materiais artísticos, favorecedores de uma ação criativa mais elaborada. Assim sua produção questiona conceitos teóricos a respeito da doença mental como incapacitante e limitante dos sentidos e da imaginação, onde o apelo criador não desaparece, segundo Howard Gardner, ao contrário, muitas vezes se intensifica. Sua produção remete a questões do campo da arte, da educação, da saúde mental, de naturezas social, filosófica e antropológica. Estas interações apareceram e permanecem como tramas de uma tapeçaria tecida, onde o fio que elegemos é o da investigação estética.

          Para o crítico Para o crítico de arte, Arthur Danto, uma arte pluralista necessita de uma crítica pluralista de arte, ou seja, propõe-se uma crítica que não dependa de uma narrativa excludente e que se veja cada obra em seus próprios termos, referências e significados próprios, buscando entender suas manifestações plásticas.


Caneta hidrocor, recorte e colagem, sobre papel.
30,5cm x 41cm. Década de 70.

          Portanto, concluímos que nosso estudo relativo à produção plástica de Manoel Luiz da Rosa apontou qualidades estéticas, que se justificam tanto por sua trajetória, seus temas e seu processo criativo, que dialogam com aspectos da Arte Reclusa, e da Arte Contemporânea, neles transitando, sem, contudo, estabelecer com estas manifestações uma relação de pertencimento. Sua produção é presença e testemunho da história da instituição que o acolheu, e muito contribuiu na sua construção como pessoa, desde o dia em que olhou através da janela de uma sala de aula, crianças trabalhando com arte.

          Estas questões parecem merecer continuidade e aprofundamento, expandindo-se com estudos relativos à cidadania, ao ensino das artes e a aspectos que legitimem as práticas simbólicas no meio cultural e social. Resignificando as pessoas portadoras de necessidades especiais como fonte de enriquecimento cultural, quanto a suas produções artísticas ou artesanais, e seus processos criativos. São pessoas que estão à margem dos parâmetros aceitos pela sociedade vigente, consideradas incapazes e improdutivas, questionam com seu trabalho os limites da desrazão, e um lugar na comunidade.

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Mara E. Weinreb é psicóloga (CRP 07/1014) e ceramista. Especialista em Psicoterapias Humanístico- Existenciais, pela PUCRS, e Mestre em História, Teoria e Critica de Arte, pelo Instituto de Artes da UFRGS. Foi docente da Faculdade de Psicologia da PUCRS, em Porto Alegre, e do Pós–Graduação em Artes Visuais da Feevale em Novo Hamburgo. Tem participado de eventos na área das artes, bem como ministrados cursos sobre a expressão criativa e teorias psicológicas, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

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Os créditos das imagens de Manoel Luiz da Rosa são de Mara E. Weinreb.

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Revista Museu.

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