Nossas proparoxítonas geniais

 

Uma dupla sertaneja, Alvarenga & Ranchinho, já tinha feito o mesmo, cerca de 20 anos antes de Chico Buarque

Lançado há 50 anos, no início de 1971, o LP Construção, de Chico Buarque, ainda hoje é considerado um dos grandes discos da história da música popular brasileira. Quinto LP de Chico, foi lançado após seu exílio voluntário na Itália, que perdurou por cerca de 14 meses. Quando de seu retorno, em 1970, Chico já havia lançado um compacto simples, contando com “Apesar de Você” no lado A e “Desalento” no lado B.

 

Felizmente, os censores da época não consideraram de início essas duas canções obras “subversivas” e as liberaram. Uma surpresa, inclusive para o próprio Chico. Cem mil cópias vendidas e a “ficha” caiu: “você”, de “Apesar de você”, não era uma mulher mandona, autoritária, como o compositor sempre respondia a quem o indagava. Descoberto o “erro”, a canção foi censurada, proibida de ser veiculada pelas rádios e TVs, sendo os discos ainda não vendidos recolhidos pelas forças de segurança.

 

Se considerarmos o compacto “Apesar de Você”/”Desalento” como um aperitivo, o LP “Construção” revelou-se um banquete de iguarias finíssimas, daquelas que, como diria Vinícius de Moraes, “a pessoa, se fosse honrada mesmo, só devia comer metida em um banho morno, em trevas totais, sonhando, no máximo, com a mulher amada”.

 

Em dez canções que compreendem exatos 31 minutos e 12 segundos, Chico nos oferece uma obra definitiva, que nos marca “a ferro e fogo, em carne viva”. Mesmo 50 anos depois, não há como sair incólume após a audição desse disco. Para Mauro Ferreira, crítico musical, o LP Construção destaca-se pela coesão do repertório, pelo pulso político desse cancioneiro inteiramente autoral e pela adequação dos arranjos às dez músicas. Dentre elas, comento aquela que dá nome ao disco.

 

 

Versos alexandrinos

 

Maravilhosa, incomparável. Esses são alguns dos adjetivos que qualificam “Construção” de Chico. Versos alexandrinos, todos eles finalizados em palavras proparoxítonas.

 

Para muitos, “só Chico poderia fazer isso”. Realmente, Francisco Buarque de Hollanda é genial. Ponto. Mas, em relação às proparoxítonas ao final dos versos, uma dupla sertaneja, Alvarenga & Ranchinho, já tinha feito o mesmo, cerca de 20 anos antes da construção buarqueana.

 

Formada em 1929 por Murilo Alvarenga, mineiro de Itaúna, e por Diésis dos Anjos Gaia, paulista de Jacareí, a dupla iniciou sua carreira apresentando-se em circos no interior de São Paulo. Em 1934, Murilo e Diésis foram contratados pelo maestro Breno Rossi e passaram a se apresentar na Rádio São Paulo.

 

A carreira consolidou-se após a mudança para o Rio de Janeiro, onde gravaram o seu primeiro disco, em 1936, e passaram a integrar o grupo de atrações do Cassino da Urca. Faziam enorme sucesso com a criação de sátiras políticas, o que lhes valeu, também, uma série de prisões.

 

Sumiços e rearranjos

 

A formação original se desfez em 1965, quando Diésis abandonou definitivamente a dupla. Sumiços anteriores já haviam ocorrido, quando então havia sido substituído por Delamare de Abreu, irmão, por parte de mãe, de Murilo Alvarenga.

 

Com o rompimento definitivo, um “terceiro” Ranchinho surgiu, Homero de Souza Campos, conhecido também como Ranchinho da Viola e como “Ranchinho II” (apesar de ter sido o “terceiro”). Homero cantou com Alvarenga de 1965 até o falecimento deste, em 1978.

 

Mas e as proparoxítonas? Elas estão presentes em “Drama de Angélica”, canção composta em 1949 por Murilo Alvarenga e M. G. Barreto, tendo sido um dos maiores sucessos da dupla.

 

Reparem na letra: são 12 conjuntos de textos e cada um deles tem oito versos, sendo que, em praticamente todos eles, as últimas palavras são proparoxítonas.

 

Há algumas poucas exceções, tais como “perplexo” e “convexo”, mas ao longo da canção isso nem se nota, pois elas também se encaixam no ritmo estabelecido pela letra. Ouça a música, a partir de 8’50’’, no programa Ensaio, da TV Cultura.

 

Drama de Angélica (1949) – Murilo Alvarenga e M.G. Barreto

 

Ouve meu cântico

quase sem ritmo

Que a voz de um tísico

magro esquelética

Poesia épica

em forma esdrúxula

Feita sem métrica

com rima rápida

 

Amei Angélica

mulher anêmica

De cores pálidas

e gestos tímidos

Era maligna

e tinha ímpetos

De fazer cócegas

no meu esôfago

 

Em noite frígida

fomos ao Lírico

Ouvir o músico

pianista célebre

Soprava o zéfiro

ventinho úmido

Então Angélica

ficou asmática

 

Fomos ao médico

de muita clínica

Com muita prática

e preço módico

Depois do inquérito

descobre o clínico

O mal atávico

mal sifilítico

 

Mandou-me célere

comprar noz vômica

E ácido cítrico

para o seu fígado

O farmacêutico

mocinho estúpido

Errou na fórmula

fez despropósito

 

Não tendo escrúpulo

deu-me sem rótulo

Ácido fênico

e ácido prússico

Corri mui lépido

mais de um quilômetro

Num bonde elétrico

de força múltipla

 

O dia cálido

deixou-me tépido

Achei Angélica

já toda trêmula

A terapêutica

dose alopática

Lhe dei em xícara

de ferro ágate

 

Tomou num fôlego

triste e bucólica

Esta estrambólica

droga fatídica

Caiu no esôfago

deixou-a lívida

Dando-lhe cólica

e morte trágica

 

O pai de Angélica

chefe do tráfego

Homem carnívoro

ficou perplexo

Por ser estrábico

usava óculos

Um vidro côncavo

o outro convexo

 

Morreu Angélica

de um modo lúgubre

Moléstia crônica

levou-a ao túmulo

Foi feita a autópsia

todos os médicos

Foram unânimes

no diagnóstico

 

Fiz-lhe um sarcófago

assaz artístico

Todo de mármore

da cor do ébano

E sobre o túmulo

uma estatística

Coisa metódica

como Os Lusíadas

 

E numa lápide

paralelepípedo

Pus esse dístico

terno e simbólico

“Cá jaz Angélica

Moça hiperbólica

Beleza Helênica

Morreu de cólica!”

 

Os tijolos e os ‘causos’

 

Obviamente, a genialidade de ambas as canções não está relacionada somente à presença das proparoxítonas, é muito mais do que isso.

 

Chico, em alguns poucos minutos, descreve o cotidiano de um operário da construção civil, com todas as suas mazelas e desencantos. As proparoxítonas funcionam como tijolos em uma construção mágica e trágica, em uma tensão crescente embalada pelo também genial arranjo do maestro Rogério Duprat.

 

Alvarenga e Ranchinho, por sua vez, nos remetem àqueles “causos” que ouvíamos de nossos pais, histórias das quais ansiávamos por conhecer o seu final, mesmo que trágico. Uma verdadeira novela, arrebatadora, com idas e vindas, em uma interpretação perfeita da dupla. Ao final, não há como não gargalhar, a despeito do “Drama de Angélica”.

 

Chico é um intelectual, com sólida formação cultural. Alvarenga é de origem humilde, iniciou a carreira em circo e se tornou símbolo da música caipira. Tão diferentes e tão geniais. Como diria Caetano Veloso, “salve o compositor popular” do Brasil.

 

José Paes de Almeida Nogueira Pinto é professor do Departamento de Produção Animal e Medicina Veterinária Preventiva, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, câmpus de Botucatu. É assessor da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp

 

Do Jornal da Unesp

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