Nos velhos tempos da arte conceitual, isto é, há 30 anos, a performance foi o veículo a que os artistas mais recorreram para a demonstração de suas idéias. O desgaste pelo uso e o surto histérico de performáticos como os austríacos Rudolf Schwarzkogler e Hermann Nitsch provocaram o desinteresse – e repulsa – pelo gênero, mas alguns resistiram. Como o universo do conceito está intimamente ligado a uma atitude política, os resistentes passaram a assumir um papel na história da arte contrário ao desempenhado pelas instituições – museológicas, sobretudo. Seriam testemunhas vivas de um paradoxo: a necessidade da arte e a falta de espaço para ela no mundo contemporâneo, que escolheu a ação e repudiou a contemplação. A 15.ª edição do Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, dedicada à performance, quer investigar por que os artistas, mais uma vez, retomam a performance em tempos de crise.
Foi assim desde que os futuristas, no começo do século passado, encontraram um meio de confrontar a academia e impor o novo, apropriando-se das idéias teatrais do francês Alfred Jarry e reciclando a patafísica do autor de Ubu Rei. O futurista Marinetti, num magistral golpe publicitário de autopromoção, aproveitou a onda nacionalista e inventou sua “serata” política não só contra os austríacos, que dominavam a Itália em 1910, mas contra a arte estabelecida. Não é preciso lembrar a adesão subseqüente dos futuristas ao fascismo para mostrar que nem sempre vanguarda artística significa vanguarda política. Aliás, quase nunca. A maioria dos performáticos está tão ocupada com o próprio corpo que nem lhe passa pela cabeça examinar o território por onde ele circula.
A grande estrela do Videobrasil, Marina Abramovic, por exemplo, parecia mesmo desconhecer a história da arte quando começou sua carreira, em 1974. Nessa performance de estréia, a artista de Belgrado colocava-se à disposição do público de uma galeria de arte em Nápoles em seu ritual de abuso corporal (ou purificação, como ela dizia). Sobre a mesa estavam vários instrumentos cortantes. Marina parecia disposta a ficar seis horas “exposta” aos visitantes (público de galeria, não torturadores, evoque-se). Na terceira hora, suas roupas estavam rasgadas, seu corpo retalhado por lâminas de barbear e a artista, em estado de pânico pela disputa entre os bárbaros em torno da melhor arma. Marina, evidentemente, desconhecia ou não lera a história de Schwarzkogler, morto cinco anos antes num ritual de automutilação com navalha que o conduziu à morte.
Claro que, nos anos 1970, não havia apenas performáticos masoquistas como Marina Abramovic e Rudolf Schwarzkogler, que exploravam o corpo como material artístico para despertar uma “sociedade anestesiada”. Existiam os que simplesmente investigavam a linguagem desse corpo, como Scott Burton, que reproduzia “tableaux vivants” da pintura neoclássica, ou Dennis Oppenheim, que usava o corpo como escultura viva, em contraste com a performance ascética dos minimalistas, sempre com aquela velha história de buscar o “essencial” na arte.
Essa não parece nem de longe a proposição da nova geração de performáticos presentes no Videobrasil, como Coco Fusco. Ela não faria feio com a meninada que levantava barricadas contra a polícia em 1968, gritando slogans e investindo contra o comércio de arte das galerias. Coco, nova-iorquina, filha de mãe cubana e pai italiano, tinha, então, 5 anos. Seu “aggiornamento” das performances políticas do passado poderá ser visto esta semana, se tudo correr como o previsto, em qualquer prédio que represente o poder norte-americano, seja o consulado dos EUA ou uma multinacional. Coco e mais voluntários vão limpar a calçada desses prédios, num gesto que representa simbolicamente a lavagem das marcas da intervenção militar americana em várias regiões do globo.
Outro artista que deve algo à geração mais velha é o brasileiro Wagner Morales, autor de um documentário sobre a performer Coco Fusco. Amanhã, o Videobrasil exibe Filme de Guerra, sua primeira sessão da mostra competitiva. Assim como os pioneiros que usaram a mídia eletrônica, nos anos 1980, para registrar performances – especialmente John Jesurun, que trabalhava o trânsito entre realidade e imagem virtual, transferindo o ator do palco para a tela – Morales transfere para a tela o campo de ação real de um conflito real (no caso, a Normandia, palco de desembarque dos aliados, na 2ª Guerra). O filme elege a paisagem como representação metafórica de um conflito, entre aquilo que se vê e o que está por trás dela, parodiando os documentários de guerra – que transformam o conflito bélico em espetáculo pictórico (ou pirotécnico).
Outro brasileiro que o mundo precisa ver é Karim Ainouz, autor, ao lado de Marcelo Gomes, do surpreendente Sertão de Acrílico Azul Piscina. O filme inaugura um novo gênero, o “documentário devaneio”. Mais uma vez, é impossível não pensar em Jesurun ou Robert Whitman nesse registro lúdico do árido sertão brasileiro. Ainouz, diretor do ousado Madame Satã, lida, como Whitman, com distorções de imagem e transformação da paisagem por intervenção da luz artificial.
Entre os destaques da mostra, merecem um olhar cuidadoso o vídeo do sul-africano Greg Smith (Background to a Seduction, que registra o diálogo de um casal diante de uma garrafa de vinho), o curioso Devastation, da iraniana Mania Akbari, e a retrospectiva do grupo The Kitchen. É revendo o passado que se chega ao futuro.