Antes de completar 25 anos, Machado de Assis, gênio e mulato, atuou como censor do Conservatório Dramático Brasileiro, para o qual assinou 16 pareceres, entre os quais o que vetava peça em cujo final um escravo casava com uma baronesa Três machadianos estão relacionados à publicação dos pareceres de Machado de Assis feitos para o Conservatório Dramático Brasileiro (Revista do Livro, números 1 e 2, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, junho de 1956): o ex-diretor do INL, Augusto Meyer, poeta e ensaísta, que desde a fundação do órgão planejava dotá-lo de um periódico; o pesquisador da bibliografia de Machado de Assis, José Galante de Sousa, que faria o elogio dos pareceres para o número seguinte da Revista do Livro e o decisivo personagem do caso, o crítico literário de O Enigma de Capitu, Eugênio Gomes, que em 1952, na direção da Biblioteca Nacional, legatária do acervo do extinto Conservatório, encontrou os originais de um outro enigma: o do Machado censor.
Tão surpreendente quanto os manuscritos é o contexto de uma homenagem da Revista do Livro ao aniversário do Bruxo, quando o homenageado mesmo afirma, num de seus pareceres, ser “deplorável” a hipótese de censura “por intolerância de escola”, o que só agrava a intolerância moral que aqui e ali ele adota. Não há surpresas, finalmente: o INL foi fundado na primeira hora do Estado Novo e Galante de Sousa seria censor das co-edições do INL durante o regime militar de 1964 – as duas ditaduras republicanas do século 20, mais discricionárias do que qualquer fase da monarquia. Quanto a Machado…
Redigidos nos próprios formulários com que o Conservatório enviava as peças para julgamento, os 16 pareceres assinados por Machado de Assis cobrem um período de exatos dois anos, de 16 de março de 1862 a 12 de março de 1864, às vésperas de seus 25 anos. Até a divulgação do conjunto, somente haviam sido publicados dois pareceres, o primeiro em jornal da época, o outro após a morte do autor, quando então aparece o nome de Machado de Assis ligado ao aparato censório do Império (Lafaiete Silva, João Caetano e sua Época, Rio de Janeiro: 1936; Modesto de Abreu, Machado de Assis, Rio de Janeiro: 1936).
Para dar historicidade a este vago Machado – como se o célebre escritor não viesse do anônimo censor, fruto dentro da casca –, ali já se flagra o operante leitor, o exímio tradutor, o fluente narrador, com dois livros publicados (A Queda que as Mulheres Têm para os Tolos e Desencantos) e mais dois em preparo (Quase ministro e Crisálidas). Não há dúvida: trata-se realmente dele.
“Tudo, menos o busto-ídolo”, disse André Gide: a hagiografia de São Machado de Assis, além de desumanizá-lo, leva ao ostracismo de seus pares. É no caldo cultural formado por aqueles a quem vetou ou aprovou que se destaca, por contraste positivo, a ficção de Machado; por contraste negativo, a censura do jovem Machadinho. São autores que tinham ou viriam a ter relevância senão literária, social, compartilhando com Machado, inclusive, alguns dados biográficos ou bibliográficos.
Para humanizar os dois pólos desta relação entre o primus e seus pares, passemos às ressalvas da lista de Machado: Antônio Moutinho de Sousa (Porto, 1834 – Porto, 1898), autor de Amor e Honra e Pelaio ou A Vingança de uma Afronta (ambos de 1856), Fumo sem Fogo (1861), todos dramas, e Finalmente (1862), comédia aprovada por Machado de Assis, que a julga equivocadamente uma tradução, erro justificável por ser comum, à época, não se declinar a natureza ou, inversamente, a autoria da tradução, o que, aliás, ocorreu na estréia de Machado em livro, uma tradução que chegou a ser considerada disfarce autoral (Pereira, Lúcia Miguel. Machado de Assis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936). Sobre Finalmente, escreve Machado:
“Todavia o meu escrúpulo leva-me a aconselhar a supressão de uma expressão de Azevedo na segunda cena. É a seguinte a resposta ao criado: – Ela disse que o alecrim havia de me fazer bem à cabeça… amarga zombaria!/A frase isolada nada tem de repreensível; mas se nos lembrarmos de que Azevedo está persuadido de que os ramalhetes de Augusto são dirigidos a sua mulher, acharemos equívoco na expressão.”
Augusto César de Lacerda (Lisboa, 1829 – Lisboa, 1903), ator, empresário teatral e teatrólogo, estreou possivelmente em 1855, de quando datam Dois Mundos e Cinismo, Ceticismo, Crença, seguidas de quase duas dezenas de peças, como a comédia Mistérios Sociais (1858), remendada – recalcada? – por Machado, que condicionou a aprovação do casamento na peça à mudança da condição do protagonista, um escravo como os avós de Machado de Assis, cujo próprio casamento só se deu graças à determinação de Carolina de romper com sua família portuguesa:
“(…) pode subir à cena, acho eu, feitas certas alterações. Uma delas afeta a parte principal do drama; é a alteração da condição social do protagonista. O protagonista é um escravo (…). No desenlace da peça, Lucena (o protagonista), casa com uma baronesa. A teoria filosófica não reconhece diferença entre dois indivíduos que como aqueles tinham a virtude no mesmo nível; mas nas condições de uma sociedade como a nossa, esse modo de terminar a peça deve ser alterado. Dois expedientes se apresentam para remover a dificuldade: o primeiro, é não efetuar o casamento (…). Julgo que o segundo expediente é melhor e mais fácil [o protagonista seria um falso escravo] (…). Feitas essas correções julgo que a peça pode subir à cena”. Machado ainda acrescenta duas emendas: quando se fala em “a falta de certo pundonor”, quer que se especifique: “a dos escravos”; sobre um certo “pagamento da parte do roubo”, também apõe uma emenda: “Entre esses objetos haviam (sic) alguns escravos.”
Ao leitor, a batata quente de julgar.
Ricardo Oiticica é doutor em Literatura de Língua Portuguesa (PUC-Rio)