Anos Blindados

Em 1979, quando o governo militar ensaiava uma distensão lenta e progressiva, mas ainda sua sombra censora pairava sobre a sociedade brasileira, o jornalista e professor Adauto Novaes aproveitou uma brecha e, sob o patrocínio de um órgão governamental, a Funarte, convidou 16 pensadores para avaliar a produção cultural da década que se encerrava. Apesar da dificuldade de se analisar um período que, além de não ter o recuo necessário de tempo para ser alvo de um exame minucioso, ainda estava submetido à irracionalidade da ditadura militar, o convite resultou em 25 ensaios que formaram cinco volumes sobre música, literatura, teatro, televisão e cinema.

“Desde então, esses livrinhos passaram a ser tão disputados por estudantes e pensadores que percebemos a utilidade de republicá-los”, afirma Heloisa Buarque de Hollanda, uma entre aqueles 16 pesquisadores. Dona da editora Aeroplano, ela relança a obra em parceria com a editora Senac Rio. Anos 70: ainda sob a Tempestade (486 págs., R$ 65) traz o mesmos textos escritos no calor do hora, mas acrescidos de comentários atualizados. Somente o artigo de José Carlos Avellar foi atualizado em 1986, por opção do autor. Heloisa relembra a aventura que foi a publicação dos livros. “Todos escreveram em ritmo jornalístico durante quatro meses e o Adauto reunia os autores como se fosse uma conspiração. Mas era necessário, pois todos discutiam seu trabalho com os demais: era uma avaliação conjuntural.”

Apesar de alguns artigos terem ficado datados em alguns momentos (o que é até corrigido pelos próprios autores nos textos de abertura recentemente escritos), Adauto Novaes reforça a importância que os livros ostentam ainda hoje. Afinal, além do declínio da ditadura, “neles lemos o começo da mais radical das transições culturais do País, dois movimentos – fim da ditadura e transição cultural – que devem ser pensados na sua particularidade”, escreve ele na introdução.

De fato, Heloisa conta que a década de 1970, ao contrário da sua antecessora, é a que menos reúne material de pesquisa por conta da pressão da censura, o que obrigou muitos autores a produzir clandestinamente seus trabalhos. Daí a importância, por exemplo, de se aprofundar textos como o bem-humorado O Minuto e o Milênio ou Por Favor, Professor, uma Década de cada Vez, em que José Miguel Wisnik traz uma crítica severa à grande divisão da música popular brasileira entre o industrial, graças ao aumento do número de gravadoras, e o artesanal, que compreende os criadores de uma obra marcadamente individualizada. Coloca em cada lado, portanto, Roberto Carlos e Chico Buarque.

Se o mercado da música prosperava, apesar do vazio cultural imposto pela censura (o que fazia os protestos surgirem cifrados na letra das canções), o do cinema era praticamente tomado pela pornochanchada que, como observa Avellar, nascera de um tipo de pressão da censura e de um tipo de solicitação do público. A resistência, porém, estava presente tanto no florescimento do cinema alternativo como em obras que filtravam a realidade. É o caso de Toda Nudez Será Castigada, dirigido por Arnaldo Jabor em 1973 a partir da peça de Nelson Rodrigues: “Ele viu na peça de Rodrigues a perfeita representação do que se passava então no País: uma tentativa de dissimular a desordem e o desespero dos seres humanos sob o pretexto de manter a boa educação.”

Também as artes cênicas obrigavam-se a fugir da opressão militar e uma das soluções, como aponta no livro Mariângela Alves de Lima, crítica do Estado, era explorar situações caseiras para falar sobre uma conjuntura maior. Em Trate-me, Leão, o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone aparentemente fala de sua própria esquina para, na verdade, lamentar o isolamento, a ignorância e a sensação de desamparo que marcava os jovens do período pós-64: crianças mal informadas, sem história e sem objetivos.

O mesmo objetivo tinham alguns escritores em atuação na década, como Antônio Callado que, com Bar D. Juan, de 1971, buscava contar a História, testemunhar, colar-se ao real imediato. Já a televisão era marcada pela consolidação da Rede Globo, que tanto se tornou porta-voz do milagre econômico como abrigava figuras como Chacrinha que, ao atender o “povão”, chocava os padrões estéticos da empresa. “Eram as contradições de uma década provocadora”, completa Heloisa.

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