O ministro da Cultura, Gilberto Gil
*Terra Magazine – Ministro, nessa questão da TV pública ainda reina uma grande incompreensão do que ela será exatamente. O debate tem sido, quase sempre, um monólogo, com uma acentuada intenção de confundir. Qual é o conceito básico, nuclear, da TV pública? * *Gilberto Gil -* TV pública…
*Como é que ela não se confunde com a TV estatal, por exemplo?* Porque ela não é comercial, não compete no campo dos recursos vindos da publicidade, não pertence a nenhum grupo econômico, sociedades anônimas ou de outro tipo. Ela é do Estado, ela é pública. Porque é pública a partir da sua origem e é pública na sua destinação, a partir da sua missão. Ela tem compromisso com a visão pública, assim como o domínio público no direito de propriedade.
*Veja também:
» Vídeo: Gil fala sobre TV pública e TV estatal <http://tv.terra.com.br/home.aspx?channel=901&play=1&contentid=166499>
» Vídeo: Gil analisa sua atuação no Ministério
<http://tv.terra.com.br/home.aspx?channel=901&play=1&contentid=166500>*
*Mas pairam dúvidas… Por exemplo: no Piauí, Rio Grande do Sul, Bahia, qualquer lugar, de que forma, do ponto de vista prático, a TV pública se conectará às TVs estaduais? Isso já está sendo discutido?* Tá começando a se discutir. Tivemos uma reunião com o ministro-secretário, Franklin Martins, outra reunião com o presidente e ministros. A intenção do governo é criar um sistema público de televisão que vai requerer exatamente essa aglutinação das televisões todas que estão pulverizadas por aí, umas no âmbito do Estado, outras ligadas às universidades, outras aos legislativos, ao judiciário. Quer dizer, a criação de um sistema nacional de televisão pública vai passar primeiro por um enxugamento institucional. Há toda uma modelagem, uma variedade muito grande de modelos institucionais.
*Dezessete tipos…*
Dezessete tipos diferentes que vão ter que entrar numa compatibilização mínima. Não vamos também advogar a hipótese absurda de que haja um modelo só. Portanto, compartimentalizar todas essas modelagens que estão nos estados etc etc num sistema nacional.
*Como a questão da TV digital está bastante avançada nas emissoras privadas, sua expectativa é que em torno de um ano se concretize a TV
pública?*
É, essa é a expectativa do governo. De que a gente chegue ao ano que vem com este novo modelo de televisão pública no Brasil já implementado e implantado. Conversei com o ministro Franklin Martins e a visão que ele tem é de que isso se faz urgente. As TVs privadas vão migrar ainda este ano para o digital, e por isso a urgência. A TV pública terá que estar implementada, implantada, já no final deste ano, inicio do próximo ano.
*De uma certa forma isso é a retomada de uma discussão que, no primeiro mandato, se deu através da questão Ancinav, a discussão sobre comunicação de massa. No momento há três projetos no Congresso onde se discute comunicação de massa. O ministério tá acompanhando, tá participando, são coisas que se sobrepõem?* O ministério mantém o entendimento de que é preciso tanto atualizar o marco legal quanto o marco regulatório. São demandas naturais. O marco regulatório porque a gestão dos interesses variados nesse campo precisa ser feita a partir de uma regularização, cada vez mais. É o modo como as sociedades, as democracias abertas, capitalistas etc etc, vêm enfrentando essa questão. E o marco legalislativo, o marco legal, precisa também porque muitas das leis – a lei da comunicação social – são atropeladas pela realidade, pela tecnologia. Mas até antes do que isso, elas datam de, no caso da lei da base…
*De 1961 ou…*
1962. Portanto, desde antes da ditadura. Essa é a realidade. Quer dizer, é o histórico que se tem. E então é preciso regular, sim. O ministério da Cultura continua acompanhando com muito interesse. Tem a sua própria visão, quer dizer, que ele não quer ver necessariamente prevalecer, mas ela vai fazer parte e instruir o debate, como tantas outras posições vão instruir o debate. A proposta da Ancinav naquele momento já era esse debate. Já era neste sentido de que a gente compreende a necessidade de uma regulação dos interesses que se acumulam cada vez mais. Quer dizer, são novos interesses que vão chegando, velhos interesses que se articulam e se rearticulam em novas chamadas sinergias etc. Há, portanto, o perigo de monopólios e oligopólios etc etc. E essas coisas todas, a gestão da democracia aberta precisa cuidar e enfrentar.
*Dentro dessa mesma concepção, em que pé está, como estão os pontos de cultura? Resistiriam a uma troca de governo daqui três, quatro anos?
Como é que está isso hoje do ponto de vista objetivo, prático: quantos são pelo país?* Já são mais de 600, no país todo. Eles são muito bem recebidos pelo conjunto da sociedade porque representam uma compreensão da necessidade do protagonismo, enfim, social, popular etc. Os pontos de cultura são autonomias de concepção e gestão de processos culturais por parte da sociedade e o governo vem ajudá-los, prestigiá-los, vem reforçar esse protagonismo. E isso tudo é muito bem recebido pela sociedade. Então, neste aspecto, os pontos de cultura vão indo muito bem, são um projeto vitorioso. Ainda, a escala não é…
*Prá ficar claro para quem não conhece, dê um exemplo. O que é um ponto de cultura?* O ponto de cultura começa com a identificação de um projeto, de um processo cultural já existente, em geral realizado por setores da sociedade, que vai de tribos indígenas, passando por quilombos, por centros acadêmicos de universidades, enfim, iniciativas sócio-culturais de associações de bairros, disso e daquilo, de clubes, de estudantes etc etc.
Essas iniciativas são avaliadas pelo ministério; propõem-se um fluxo de recursos do governo via ministério para essas iniciativas, garantindo-se a autonomia delas, o direito autônomo de produzirem o que quiserem, utilizarem os recursos da forma que quiserem. E evidentemente, um trabalho instrutivo, um trabalho, digamos assim, de… como é que eu poderia dizer? De uma certa influência que o governo se dá o direito de ter sobre orientação, sobre estimulação de determinados…
*Orientação no sentido de?*
Induções para ações mais ajustadas, mais racionalizadas etc etc, para melhor gestão, melhor gerência, melhor aproveitamento de recursos, melhor desempenho na função, na missão que aquelas iniciativas queiram ter. Uma assistência, digamos assim, de dois anos. Um acompanhamento com transferência de recursos de dois anos e, depois, a previsão dá autonomia plena dessas iniciativas, autonomia financeira, política etc.
*Voltando à primeira parte da nossa conversa, a autoria do debate, a proposição do debate da TV pública é do ministério da Cultura? Porque ficou meio confuso, o outro ministro, das Comunicações, chutou o pau da barraca, o governo, o Palácio, assumiu a paternidade…* Acho que há duas coisas. Acho que há uma iniciativa do âmbito geral do governo, que partiu da própria Presidência da República, do seu gabinete, da Casa Civil etc, que tem o seu modo de responder… Por outro lado, houve uma antecipação do ministério da Cultura, entendendo que esta questão é uma questão relevante, que deve ser encarada pelo governo. Como contribuição para o próprio conjunto do governo, o ministério da Cultura resolveu convocar o campo da TV pública no Brasil inteiro, prá discutir seu próprio problema e prá discutir, a partir da visão de todos os componentes deste campo, qual a relação, qual é a expectativa em relação à atuação do governo, qual é a expectativa em relação ao papel do governo.
*Isso no ano passado ainda…*
Isso. Isso se consubstanciou, se corporificou, com a instalação de um fórum, que passou a funcionar preparatoriamente em setembro do ano passado e que já produziu dois documentos, dois relatórios. O primeiro relatório ficou pronto em novembro e agora ficou pronto o segundo. E, de
8 a 11 de maio, teremos o Fórum Nacional das TVs públicas, a partir desse um conjunto de reflexões, agora à disposição do governo. No meio tempo, surgiu por causa da questão da TV digital, uma precipitação natural do desejo de apressar…
*Já se vive a IPTV – /internet protocol television/ – a televisão por internet, que já é um outro estágio…* É… a velocidade com que as coisas vão se acumulando neste campo é muito grande. Daí também, digamos assim, a entrada mais explícita de outras áreas do governo – ministério das Comunicações, Casa Civil, Secretaria da Presidência etc – que vão se somar agora a uma iniciativa que já vai de um ano, de pelo menos seis meses, do ministério da Cultura… Uma interlocução que vem feita do setor, todo o setor, com o ministério da Cultura. Agora a gente repassa essa interlocução…
*É o reconhecimento da televisão como um elemento fundamental do “fazer cultura”, perceba-se isso como for, como instrumento de poder, e não como uma coisinha ali na prateleira…* Não, não, claro que a televisão não é só isso. Uma coisa, aliás é a compreensão que se tem hoje de que o aperfeiçoamento da televisão pública no Brasil, em todos os sentidos, desde suas condições técnicas até a sua dimensão política, enfim, ao compartilhamento do território, cultural etc etc, é importante para o conjunto da televisão brasileira…
*Porque pode vir a produzir crítica, um outro olhar?* Que vai produzir a crítica, vai produzir o diálogo, vai produzir a competição cultural propriamente dita, ainda que a televisão pública não vá competir com a televisão privada, em termos de negócio, mas vai competir em termos de cultura.
*Outra questão que, inclusive mundo afora tem se discutido também com a sua participação, é questão de propriedade intelectual…* A discussão da propriedade intelectual é ampla, abrange desde o direito autoral, que cobre autorias literárias, musicais, tecnico-científicas etc etc, até as patentes, que são propriedade industrial. Mas a discussão vem sendo feita amplamente em todos estes setores. O Brasil tem tomado posições importantes: propôs a Agenda pro Desenvolvimento na OMPI – a Organização Mundial de Propriedade Intelectual – defendendo a inserção mais nítida dos países em desenvolvimento, com suas agendas próprias, com sua diferenciação no tratamento da questão da propriedade intelectual relativamente aos países desenvolvidos, porque têm realidades distintas, têm que arcar com compromissos diferenciados etc.
*E não é uma posição isolada…*
Basicamente nos países em desenvolvimento é que se encontra a diversidade cultural tal como ela é entendida, comparativamente à biodiversidade. Ou seja, as espécies raras etc, estão exatamente nos países em desenvolvimento, países que entram numa posição de desvantagem na disputa do jogo internacional. Então, o Brasil vem propondo isso, já a partir do Itamaraty, a partir de outros ministérios. O ministério da Cultura entrou o ano passado nesta discussão. Vem defendendo a Agenda para o Desenvolvimento lá na OMPI. E, por outro lado, unilateralmente naquilo que lhe diz respeito, naquilo que é da sua prerrogativa, o ministério da Cultura vem propondo em outras áreas. Inclusive na área que lhe afeta diretamente, que é o do direito autoral. Que aí é competência do ministério da Cultura a formulação…
*Qual é a tua posição, uma vez que, no caso, o ministro é também autor, compositor, vive isso, ou viveu, na ponta do processo, como alguém que não pode, por exemplo, mexer nas suas próprias músicas?* A posição é essa. A mesma questão das comunicações sociais. Precisa haver uma atualização do marco legal e do marco regulatório. Precisam de uma nova lei, porque ela também é antiga, é de lá da década 1960. Aí tem a questão das novas tecnologias, que estão forçando. Elas são democratizantes. E tem a questão do próprio conhecimento, a defesa do próprio fluxo histórico na circulação dos elementos que formam o conhecimento, artístico, científico, cultural nos vários sentidos, que requer o que a gente chama de flexibilização da propriedade intelectual.
Enfim, a questão do domínio público, que é também uma questão historicamente importante. A propriedade intelectual foi criada exatamente para ser um mecanismo de defesa…
*Não pode ser uma prisão…*
…não pode, é um mecanismo de defesa da circulação, da livre-circulação do conhecimento, das idéias etc etc. A tendência histórica com, digamos assim, a comoditização, quer dizer, transformação – os enclousures, como eles chamam, né? – o aprisionamento da propriedade intelectual no âmbito dos interesses…
*Para dar um exemplo claro. Você por exemplo, não poderia modificar uma música sua…* Exemplos claríssimos: na Argentina, pouco tempo atrás, um autor vendeu os direitos de um de seus livros prá uma editora americana e um ano, dois anos depois, ele quis usar um dos personagens deste livro para desenvolvê-lo num livro seguinte. Não teve autorização para modificar sua própria obra, para usar sua própria obra. Isso se estende a essa idéia do compartilhamento e da modulação, que é uma idéia que sempre permeou o mundo das idéias, o mundo científico.
*Essa é uma idéia que…*
…essa idéia de que a interrupção do fluxo por parte de um autor, a interrupção deste fluxo, é arbitrária sempre. Se eu determino que essa música agora é minha, que esse arranjo de notas musicais e de melodias e de ritmo agora é meu, isso é uma coisa arbitrária, porque na verdade não é meu! As sete notas, elas estão circulando aí, em formas variadas, infinitamente variadas, desde sempre, desde que Pitágoras inventou as sete notas. Então, coisas desse tipo…
*O açaí, a castanha, não sei o cupuaçu, também aí, em produtos naturais do Brasil, já houve casos disso que você chama de “aprisionamento”…* Exato. A cachaça, que os japoneses patentearam – patentearam a marca cachaça. E por aí vai. Os conhecimentos tradicionais precisam encontrar um status também de reconhecimento, de atribuição de direito. Essa relação estreita entre biodiversidade e semiodiversidade. Ou seja, de diversidade cultural, assim, os conhecimentos dos povos das florestas que está ligado ao mesmo tempo à cultura e ao meio ambiente e sendo apropriado há décadas e décadas e décadas. Então, tudo isso criou a questão internacional muito séria agora, na qual o Brasil tem que se inserir com a sua posição.
*Há uma outra questão que também é correlata – que todas são, no fundo – que é uma espécie de “Protocolo de Kyoto” da cultura, que levará a um encontro em Paris, agora em junho…* A convenção da Diversidade Cultural, que foi aprovada em Paris ano passado, na Unesco. É uma iniciativa da Unesco – a Cultura sai da OMC (/Organização Mundial do Comércio/), vai pro âmbito da Unesco. A Convenção garante aos Estados, às nações, aos governos nacionais, autonomia no tratamento da questão, proteção da sua diversidade cultural, quando assim for entendido, quando assim for conveniente etc.
Essa convenção vai ser ratificada, já foi ratificada por quase quarenta países e agora em junho, em Paris, ela entra em funcionamento.
*E qual é a implementação disso? Como é que se dá?* Essa é uma das questões que agora cabem aos Estados. A Organização dos Estados Americanos, na última reunião do setor cultural, em Washington, atribuiu ao Brasil a tarefa de fazer um seminário, um primeiro seminário internacional, em que a implementação prática, os aspectos práticos da implementação da convenção, fossem discutidos aqui.
*Quando é esse seminário?*
Agora em junho. Para já subsidiar os países mais imediatamente interessados a terem os mecanismos, terem à disposição um elenco de mecanismos possíveis para acionar as formas de intervenção de cada Estado nestes campos.
*Só para encerrar, é pra não dizer que não falamos das flores. Tú tá acabando de chegar de uma excursão pelos Estados Unidos…* Eu vim de lá, agora. Fui a onze cidades dos Estados Unidos e uma do Canadá. Passei pelo Texas, pela Flórida, Califórnia, Nova Inglaterra etc. Estive em Nova York, Los Angeles. Em várias universidades. Uma parte das apresentações foi em universidades – como a Universidade de Washington, a Universidade de Berkeley, na Califórnia – enfim, eu, pela primeira vez, só com violão. Foi uma excursão muito interessante, uma oportunidade de os americanos encararem a minha música na raiz, a minha música de origem, que é meu violão e o meu canto. Foi uma coisa muito interessante.
*E foi bom também prá desconectar um pouco?* Isso também, porque aliás, era uma compromisso que eu já tinha assumido e que eu coloquei na mesa com o presidente quando discutimos a minha permanência. Eu já tinha assumido esse compromisso nos Estados Unidos e o presidente então me recomendou, na ocasião, que eu me licenciasse, se permanecesse no ministério – como ele queria e como acabou prevalecendo
– eu me licenciasse, exatamente neste período agora de março. Eu me licenciei do dia 12 de março ao dia 31.
*Para encerrar, quase pareceu que tu tava desistindo, que ia sair…* Não é que eu tinha desistido. Eu queria sair, eu tinha decidido sair.
Primeiro, por avaliar que a minha contribuição, ainda que modesta, ou não, já tinha sido dada. Segundo, eu tava muito cansado. E, terceiro, eu queria um pouco me voltar prá minha própria vida pessoal, nos vários aspectos que dizem respeito a ela, inclusive à própria carreira….
Família, carreira, enfim, todas essas coisas, a vida de músico, a vida de militante ambientalista, tantas coisas…
*Mas, sempre há um “mas”…*
Mas aí, primeiro, houve ponderações internas dentro do próprio ministério. Quer dizer, o time, o conjunto, a comunidade MinC, toda ela se fechou no sentido de pedir a minha permanência. Depois, o próprio governo, o próprio presidente Lula e vários setores da sociedade se manifestaram abertamente, eloqüentemente assim em relação à minha permanência. E eu acabei tendo de levar tudo isto em consideração. E como estar no ministério, ter sido ministro esses quatro anos não tinha sido alguma coisa que eu poderia chamar de…
*…ruim?*
De ruim, pelo contrário, eu tinha tido muita satisfação, muito gosto e reconhecia também algum mérito no modo de atuar, naquilo que foi feito, no resultado, na resultante de programos e projetos etc, então por isso eu resolvi ficar.
Bob Fernandes
12/04/07