A diáspora africana é uma forma atualizada de traduzir a reflexão do pan-africanismo. Esse é um fenômeno que deve ser analisado pelos aspectos: político, ideológico e econômico.
“Uma pesquisa recente na área da economia revelou que, para cada mil habitantes ricos no planeta, existem 101 milhões de pobres e miseráveis. Desse total, 90% pertence à população não-branca (que não inclui apenas os negros)”, afirma o antropólogo Julio César de Tavares à Agência FAPESP.
O também professor da Universidade Federal Fluminense é um dos organizadores da III Conferência Internacional da Diáspora Africana, que será encerrada nesta sexta (7/10), no Rio de Janeiro. “O dado do estudo não deixa de ser chocante”, admite o pesquisador, que há quatro anos foi um dos fundadores da Associação para o Estudo da Diáspora no Mundo (Aswad), em um evento realizado na cidade de Nova York. A instituição é a promotora do encontro carioca.
“A diáspora nos coloca diante de um problema global. Não devemos achar que a solução para a situação da população de afro-descendentes no mundo será uma solução em níveis nacionais”, afirma o antropólogo.
Antes mesmo da idéia e do advento da globalização, o historiador norte-americano Joseph Harris começou a produzir, ainda na década de 1960, o mapa da diáspora africana, o qual mostra os caminhos da dispersão dos africanos pelo mundo afora. Publicado em 1990, mostra também que os árabes já traficavam negros da África para a Ásia bem antes dos europeus. “Essa imagem é importante porque disponibiliza informações antes restritas a documentos históricos. Ele torna o fenômeno visível”, observa Julio César.
Harris, professor de História da Howard University de Washington, também está no Rio. “Hoje vemos como o estereótipo do africano influiu na sua cultura e em sua história. Dizem que o negro é livre. É mesmo?”, questiona o pesquisador. “Como pode ser se ele geralmente não tem dinheiro, acesso à educação e chances igualitárias? Muitos não têm sequer auto-estima. Nunca tiveram oportunidades para tê-la”, observa o autor do mapa.
A Carolina do Norte, no sul dos Estados Unidos, surge para exemplificar a questão. “Eles eram escravos. Quando ficaram livres, não sabiam o que fazer com a liberdade.”
O pesquisador norte-americano relembra a chegada dos europeus ao continente africano, na época da colonização, para reforçar sua tese. “Eles acham que os afro-descendentes não eram cultos ou civilizados antes de os conhecerem. Certa vez, em uma palestra no Senegal, percebi que os senegaleses achavam que deviam à colonização francesa o fato de hoje serem civilizados, idéia que lhes foi incutida pelos próprios franceses”, conta Harris.
Para os intelectuais, tão importante quanto visualizar a diáspora africana é ver como ela se acomodou. “Nesse processo é que se dá a construção da identidade”, afirma Julio César.
“A partir do momento em que os africanos começaram a se dispersar, passaram a ter a sua própria identidade”, diz Harris, afirmando não se sentir à vontade com o termo “negro”, usado largamente em seu país. “Para mim, o certo seria afro-americano. Isso pode fazer com que as pessoas entendam que tínhamos nossa história antes. Somos identificados como americanos, mas compromissados com a África. Aliás, para podermos um dia mudar essa situação de desigualdade, vamos ter que mudar nossa cabeça e fazer isso em respeito a nós mesmos.”
Se Joseph Harris fez o mapa da diáspora, a antropóloga norte-americana Sheila Walker, fundadora da ONG Afro-diáspora inc., lançará em breve o filme “Walker”, que em português ganhará o nome de Nas trilhas da diáspora africana. A série, dirigida pelo cineasta brasileiro Joel Zito Araújo, mapeia a presença africana nas Américas.
Sheila fez sua primeira viagem ao Brasil nos anos 1970. “Foi quando comecei a perceber a semelhança entre as religiões”, diz. Ela lembra que, aos 8 anos, viu uma mulher entrar em transe numa igreja batista de Nova Jersey, onde nasceu. “Me disseram que era o espírito que a tinha incorporado. Anos mais tarde, no Brasil, vi acontecer o mesmo no candomblé, com a diferença de que os deuses daqui tinham nomes”, observa ela.
Quanto à dispersão dos povos africanos pelo mundo, ela acredita ter havido uma sinergia africana com esses lugares. “Quando falamos em diáspora, não estamos falando de minorias. Estamos falando de uma grande maioria espalhada pelo mundo. Somos estrangeiros por conta de uma separação criada pelos europeus, mas nossa história fica viva no prato, na memória, na dança”.
Para Sheila, o pensamento dos norte-americanos brancos, por exemplo, parte de uma hipótese equivocada. “Eles acham que os afro-descendentes dos Estados Unidos não exerceram influência alguma no país. Mas e o arroz que todos comem?”, questiona a antropóloga que foi, ao lado de Joseph Harris, uma das precursoras desse tipo de encontro nos Estados Unidos. Para ela, os negros tiveram uma importância econômica muito grande na cultura do arroz nos Estados Unidos. Sem o trabalho braçal dos afro-descendentes, esse alimento não estaria presente hoje na mesa dos norte-americanos.
Washington Castilhos