Chico Buarque é um daqueles artistas excepcionais, cuja vocação e talento parecem funcionar como que antenas permanentemente voltadas para as alegrias e dores da alma de sua gente e as contradições do seu tempo.
“Ninguém vai me surpreender / Na noite da solidão”
Cordão, de Chico Buarque
O “Chico das Artes, o gênio” – na definição da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira – estava na Europa na segunda metade do ano de 2004, gravando com o diretor Roberto de Oliveira uma série de especiais sobre sua obra, trabalho que depois foi lançado em DVDs.
Fazia pouco mais de um ano e meio que Lula havia assumido o primeiro mandato e as forças progressistas deparavam-se com os desafios de governar um país gigante e desigual como o Brasil, mas apesar das dificuldades o otimismo era a regra. Nas eleições o povo havia derrotado as mentiras e as manipulações (como derrotaria depois em mais três oportunidades).
Porém, Chico Buarque é um daqueles artistas excepcionais, cuja vocação e talento parecem funcionar como que antenas permanentemente voltadas para as alegrias e dores da alma de sua gente e as contradições do seu tempo. Foi assim que, em pleno início do ciclo progressista no Brasil, quase 15 anos antes de a extrema-direita ascender ao poder, Chico disse o seguinte (veja vídeo abaixo): “hoje em dia a gente já percebe, neste mesmo pensamento de classe média (que apoiou o golpe de 1964) uma certa vontade de ordem, em nome da segurança, em nome disso e daquilo, às vezes vemos, nas cartas dos leitores em jornais, gente explicitando o desejo da volta de um governo forte no sentido da repressão, por causa da violência, que realmente é um problema muito sério, mas não é por aí. Esse pensamento não acabou. A ditadura caiu, ela se desmoralizou mas eu não imagino como uma coisa tão absurda – não um golpe militar – mas um líder populista com discurso autoritário, com discurso em nome da segurança e tal, contar com apoio popular muito grande e, democraticamente eleito, exercer o poder de forma arbitrária. A gente não imagina (que) a ditadura (será) como ela foi, é outra coisa, mas os efeitos nocivos dela, a violência, a truculência, a arbitrariedade e tal, elas estão no ar”. Provavelmente, nesta época, mais de um “sabe-tudo” da política (vamos confessar, também na esquerda temos vários deste tipo) torceu o nariz para tais preocupações de Chico Buarque.
O viajante no tempo
Tarso Genro foi feliz ao se referir a Chico Buarque como “o melhor da nossa geração”, durante um ato dos artistas e intelectuais com Dilma Rousseff no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro em 2010, quando Chico pronunciou uma frase que ficou famosa sobre o governo Lula: “Temos um governo que não fala fino com Washington, nem fala grosso com a Bolívia e o Paraguai”.
Em 2004 Chico sentiu, “no ar” o cheiro da violência, da truculência, da arbitrariedade. No caso, ele foi um visionário. Já na música “Valsa Brasileira” o poeta, em sentido inverso, também lutava contra o tempo, “não como anda um corpo, mas um sentimento”, forcejando contra o destino ele “surpreendia o sol, antes do sol raiar, saltava as noites, sem me refazer”, tudo para antecipar o encontro com a mulher amada “e pela porta de trás, da casa vazia, eu ingressaria e te veria confusa por me ver, chegando assim, mil dias antes de te conhecer”. Este poder buarqueano de “viajar no tempo”, oriundo de um talento superior, mostra que a arte é uma arma realmente poderosa, nos enchendo de estímulo e esperança na luta contra o obscurantismo, afinal, como diz outra canção do Chico: “Um dia ele vai embora maninha, pra nunca mais voltar”.
Wevergton Brito Lima, jornalista, vice-presidente do Cebrapaz
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