É impressionante como Marx foi capaz de olhar um momento específico e tirar dele uma explicação consistente para o modo como a política é feita no capitalismo
Como uma obra se torna um clássico? No caso dos livros de história, alguns são elevados a essa categoria porque trazem uma pesquisa de fôlego e uma descrição reveladora da realidade. Outros viram referência porque, além da força da análise, criam um método novo e revolucionário para a compreensão da história. O 18 Brumário de Luís Bonaparte pertence ao segundo tipo.
Seu autor é o alemão Karl Marx, filósofo, sociólogo, historiador e economista que nasceu na cidade de Trier, em 1818, e ficou eternizado como o grande teórico do comunismo. Publicado em 1852, o texto descreve um golpe de Estado recém-ocorrido na França. Carlos Luís Napoleão Bonaparte, eleito presidente do país em 1848, resolveu impor uma ditadura três anos depois.
A data escolhida para o golpe foi 2 de dezembro de 1851, aniversário de 47 anos da coroação de seu tio, o general e estadista Napoleão Bonaparte, como imperador da França. Essa repetição de Napoleões no poder inspirou Marx a formular a célebre frase com que abre seu texto, citando outro importante filósofo alemão: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
A ironia de Marx está presente até no título do livro. Anos antes de se tornar imperador, o primeiro Napoleão também havia dado um golpe de Estado, em 9 de novembro de 1799, com o qual se tornou cônsul da França. No curioso calendário que o país havia adotado após a revolução de 1789, essa data correspondia ao dia 18 do mês de brumário. Ao chamar a obra de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx indica que o golpe dado por Napoleão III era apenas uma cópia daquele que fora dado antes por seu célebre tio.
Apesar de ter ficado famosa, essa forma de olhar para as “coincidências” históricas, em que a nova versão se transforma em caricatura, não é a ideia principal de Marx no texto. O que ele fez de mais revolucionário foi perceber, analisando aqueles fatos que haviam acabado de acontecer, que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.
Ou seja: apesar de serem atores da história, as pessoas só são capazes de agir nos limites que a realidade impõe. Os atos individuais não ocupam papel central na visão de Marx. Para ele, o motor da história é a luta entre as classes sociais, responsável por produzir as transformações mais importantes. De um lado, estão sempre os dominadores. De outro, sempre os dominados.
Os primeiros são os que detêm os “meios de produção” (terra, propriedade privada, máquinas, indústrias etc.). Já os segundos são aqueles que só possuem a própria força de trabalho e que, para sobreviver, são forçados à servidão. Na Antiguidade, esse posto tinha pertencido aos escravos. No feudalismo, aos servos. Já no capitalismo, essa classe é formada pelos trabalhadores assalariados – o chamado proletariado, que vende sua força de trabalho para a burguesia.
Ao contemplar sua própria época, Marx via um confronto revolucionário no horizonte, provocado por essa distribuição injusta das posses, opondo os burgueses aos proletários. Nem era preciso olhar muito longe para entender que sua interpretação da história fazia bastante sentido.
Para os pensadores do século 19, a Revolução Francesa era a grande referência. Segundo Marx, ela marcou a mudança de posição da burguesia no grande jogo. Voltando no tempo, essa classe social já tinha sido revolucionária, quando seus interesses econômicos, que se expandiam pelo menos desde o fim da Idade Média, encontraram no parasitismo da nobreza um enorme empecilho.
Ao derrubar a monarquia, a burguesia foi se transformando aos poucos, em toda a Europa e depois no resto do mundo, na nova classe dominante. Assim, deixou de ser revolucionária e se tornou conservadora, preocupada em manter a ordem vigente. Depois da ascensão da burguesia, o proletariado tomou seu lugar como classe oprimida e, portanto, potencialmente revolucionária.
Nessa nova situação, ficou ainda mais claro que todo processo de acumulação de riqueza exige, para se concretizar, uma usurpação. Para que existam ricos, é necessário que existam pobres – esse é, simplificadamente, o raciocínio que Marx aplica a toda a história. Difícil é discordar dele.
Três anos antes de publicar O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx escrevera, na companhia de seu amigo Friedrich Engels um panfleto intitulado Manifesto do Partido Comunista. Nele, os dois explicam de forma resumida suas principais intuições sobre a dinâmica da história e interpretam as grandes transformações impostas pela burguesia. Segundo eles, para vender seus produtos, a burguesia precisava “instalar-se em todos os lugares, acomodar-se em todos os lugares, estabelecer conexões em todos os lugares”.
Por causa disso, prosseguem, “a burguesia, através de sua exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita para a produção e o consumo em todos os países”. Raciocínios como esse, de extrema lucidez, se mantêm atualíssimos sem que seja preciso alterar uma vírgula sequer. O que era fato em 1848 ainda existe.
Apesar de ser um tanto complexo para o leitor atual, o texto pretendia explicar para as massas de trabalhadores a estratégia de dominação usada pela burguesia para se perpetuar no poder. Esse “esclarecimento” era parte de um programa revolucionário: consciente de sua situação, o proletariado teria enfim condições de se rebelar contra a burguesia. Seriam, mais uma vez, os dominados se voltando contra os dominadores. A revolução proletária seria um grande passo para que se adotasse o comunismo, regime político que acabaria com a propriedade privada e com as classes sociais.
Os conceitos lançados no Manifesto do Partido Comunista também estão presentes em O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Mas, dessa vez, o desafio era interpretar acontecimentos recentes e bem conhecidos a partir de teorias que ainda estavam em formação. Ao analisar o golpe, Marx estava testando a solidez de suas ideias. E o que ele fez foi demonstrar que a atitude do sobrinho de Napoleão tinha sido apenas um resultado natural, quase previsível, dos rumos que a história da França estava tomando desde a revolução de 1789.
Ao falar da França de meados do século 19, Marx descreve toda a estratégia política, militar e institucional da burguesia francesa como um processo em que ela toma para si algo que, supostamente, deveria ser de todos: o Estado. Se Napoleão Bonaparte tinha imposto um Estado forte, imperial e expansionista, ele o fez não em benefício do povo, mas a serviço de uma só classe, a burguesia. Essa havia sido a “tragédia”.
A “farsa” veio quando Luís Bonaparte, com um golpe de Estado, se transforma em Napoleão III. Para conseguir o poder, ele foi beneficiado por alianças entre partidos burgueses – o que, segundo descreve Marx, significou trair as lideranças proletárias e tirá-las do governo.
A engenhosa argumentação de O 18 Brumário de Luís Bonaparte descreve a democracia como um imenso tabuleiro, em que os interesses de diferentes classes são manipulados sob o mecanismo de representação do povo por políticos – uma fórmula normalmente tida como justa. Depois de ler o livro, é difícil deixar de perceber que essa forma de governo, presente até hoje, oculta uma imensa engenharia de pequenos acordos. Olhando desse modo, as repúblicas modernas, aparentemente legítimas, serviriam apenas aos burgueses.
Ao falar de Napoleão III, Marx constrói a imagem de um herói de araque posando com a fantasia de grande estadista, governando em nome da dominação da burguesia sobre as outras classes. Segundo disse o amigo Engels ao escrever o prefácio da obra, 30 anos após seu lançamento, “essa notável compreensão da história viva da época, essa lúcida apreciação dos acontecimentos ao tempo em que se desenrolavam, é, realmente, sem paralelo”.
De fato, é impressionante como Marx foi capaz de olhar um momento específico e tirar dele uma explicação consistente para o modo como a política é feita no capitalismo. O modelo dos golpes napoleônicos estava pronto para muitos que vieram depois. E, desde então, a história continua a se desenrolar cada vez menos como tragédia e quase sempre como farsa.
Publicado originalmente na Aventuras na História
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