A Herança do Provençal – Euclides Amaral

 Por Euclides Amaral

Dedicado a Paulo Henrique Brito, poeta, tradutor e professor da PUC-Rio que inspirou esse o artigo e a forma como foi feita a classificação das tendências explicitadas.

Por onde andará a poesia? Como está sendo veiculada? Pergunto e respondo. De diversas formas. De tantas formas, que na certa precisaria de várias laudas e ainda assim não conseguiria. Porém, com a finalidade de afunilar a discussão vou tratar apenas de quatro tendências, superficialmente das três primeiras e entrando um pouco no mérito estético de cada uma e por fim, um pouco mais profundamente da quarta, que é a que realmente me interessa. Sempre deixando claro, que toda classificação que se preza, deixa de fora muita coisa e parte do pressuposto que os exemplos citados são os mais representativos.

A primeira tendência é a que podemos chamar de “Construtivista” é a que tem como base o apuro à linguagem, a impessoalidade e a desenfatização do subjetivismo. Esta tendência é representada por poetas descendentes da estética Mallarmaica e Poundiana. Seus representantes na maioria das vezes são estudiosos e críticos e por isso há uma certa facilidade na publicação de seus trabalhos, já que estão inseridos no mercado editorial. Citando alguns nomes que se destacam nesta tendência temos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, José Paulo Paes, Antonio Fraga, Pedro Paulo de Senna Madureira, Carlito Azevedo e Paulo Leminski, este último, transitando mais livremente em outras tendências. O lado positivo desta tendência é a estratégia poética de negação aos excessos subjetivista, porém, com emoção e técnica na construção da linguagem, o que é o caso destes autores citados. Já o lado negativo, é o narcisismo intelectual do autor e a cumplicidade do leitor, que aqui e acolá reconhece determinadas citações de autores badalados como Joyce, Dante, Homero, Octavio Paz, Jorge Luis Borges, entre outros e compactua (o leitor) com esse excesso de formalismo que muitas vezes leva o poema à perda da emoção, tornando-se poema de citação.

A segunda tendência é a “Subjetivista” e tem como enfatização o “Eu lírico”. Dentre os nomes mais conhecidos desta tendência temos Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Vinicius de Moraes e Affonso Romano de Sant’Anna. O lado positivo desta tendência é que quando este trabalho é bem feito, não se distancia do apuro estético e consegue unir a carga emocional do autor à funcionalidade da língua como coisa viva que o é. Já o lado negativo, fica a cargo de poetas que declaram guerra ao próprio umbigo e pensam que suas dores, amores, paixões e sofrimentos são as dores do mundo e saem por aí cometendo poemas numa pieguice tremenda e com um baita narcisismo emocional e encontrando em alguns leitores a cumplicidade que merecem. É muito comum encontrar esse tipo de poeta em cadernos de poesias de iniciantes – infância poética. Todavia, sabemos que é impossível fazer uma obra de arte toda vez que se escreve, sendo necessário, porém, que se tenha “leituras” e conseqüentemente senso crítico na hora em que vai publicar um texto ou mostrar um trabalho.

A terceira tendência é a que foi classificada na década de 1970 por críticos como Heloísa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Messeder Pereira, entre muitos outros, como “Poesia marginal” e que magistralmente o poeta e tradutor Paulo Henrique Brito chamou de “Poesia vivencial” em artigo no jornal Arte & Palavra. Essa tendência caracteriza-se pela reação aos excessos academicistas da poesia construtivista. Sua principal forma é o verso livre e a renovação da forma a cada poesia com base nas experiências imediatas do poeta, se aproximando assim do ritmo e da fala coloquial, tendo como precursor desta tendência os poetas modernistas e entre eles Oswald de Andrade e Luis Aranha. Dos atuais agitadores deste tipo de poesia, mas com qualidade, temos Leila Míccolis, Tanussi Cardoso, Chacal, Ledusha, Simão Pessoa, Nicolas Behr e Alice Ruiz. O lado negativo desta tendência e o uso indiscriminado dessa não-forma e que muitos poetas pensam ser de fácil uso, bastando a espontaneidade. Porém, esquecem, esses poetas, que existe a inteligência crítica e o conhecimento de algumas das outras formas, conseguindo assim manter o equilíbrio quando for andar na corda bamba e no fio do verso livre.

A quarta e última tendência eu chamarei provisoriamente de “Canção” e classificarei pela via-poundiana usando a denominação de uma de suas categorias que é a melopéia, aquela na qual as palavras estão impregnadas de uma propriedade musical que orienta o seu significado, com base no som e no ritmo, muito comum nos poetas provençais: Guilhem de Peitieu (1071-1127), Bernart de Ventadorn (1150-1195), Marcabru (1130-1150), Bertan de Born (1140-1210) e outras feras dessa época que viriam a influenciar a nossa canção popular. Diga-se de passagem, que a denominação “canção” é literária, tais como soneto, haicai, ode e elegia, entre outras. Esta forma de poesia (genericamente falando), atingiu uma amplitude tal que chegou aos nossos dias como o melhor meio de divulgação dos poetas, se não o melhor, pelo menos o mais eficiente hoje em dia. Como disse, terei que segmentar um pouco o tipo de poeta a se comentado, descartando assim compositores como Caetano Veloso e Chico Buarque, que perfeitamente se encaixam como representantes de um tipo de poeta que trazem consigo a herança dos provençais. Contudo, pretendendo direcionar ainda mais o assunto, falarei apenas de poetas-letristas, entendendo aqui como tal, aqueles que lidam com a palavra e não (também) com harmonia e construção melódica como é o caso de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, este último, sem sombra de dúvida, um dos maiores letristas, tanto de suas músicas como nas de outros compositores. O que quero tratar aqui é de poetas-letristas da nossa música popular e que através dela, conseguem divulgar seu trabalho para um público mais amplo, muito mais do que o público restrito aos livros. Em um país em que se lê pouquíssimo, ainda mais poesia, aliar a escrita poética à mídia é muito importante. Para se ter uma idéia, a cidade de Buenos Aires tem muito mais livrarias que em todo o Brasil, talvez pela inexistência de uma política governamental direcionada ao livro. São apenas três mil bibliotecas públicas em todo o país de dimensões continentais. O que existe, são esforços isolados como o do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro que na gestão de José Maria de Souza Dantas criou alguns projetos, que por fim definharam por falta de apoio municipal, estadual ou federal. Tudo isso, somando e multiplicando, fez com que os poetas procurassem formas de divulgação que não passassem só pelo formato “livro”.

A nossa tradição de poetas atuantes na música brasileira vem do século XVII com Gregório de Matos Guerra. Este, já cantava seus versos acompanhando-se de uma viola feita de cabaça fabrica por ele, segundo Araripe Júnior, citado por José Ramos Tinhorão no prefácio do livro MPB (Muita Poesia Brasileira) de Leila Míccolis. No século seguinte apareceram muitos outros poetas fazendo o mesmo uso do verso em música. Até que no século XIX, no auge do Romantismo, surgem as primeiras duplas de compositores como conhecemos hoje: um músico e um poeta como letrista. Parcerias como Xisto Bahia e Melo Moraes Filho (ascendente de Vinicius de Moraes). O músico português Rafael Coelho e o poeta criador do Romantismo Gonçalves de Magalhães. Vários outros poetas deste mesmo século enveredaram pela música popular: Catulo da Paixão Cearense, Laurindo Rabelo, Vilela Tavares e Joaquim Manuel de Macedo. No século XX, esse frisson pela letra da canção veio a desaguar em Mário de Andrade (que na sua polivalência também era músico), Manuel Bandeira (parceiro de Jaime Ovalle e Villa-Lobos), Dora Vasconcelo, Dante Milano, Oreste Barbosa, Otavio de Souza e Ferreira Gullar (quase todos parceiros de Villa-Lobos) e no que mais se enfeitiçou pela carreira de letrista: Vinícius de Moraes. Já há algum tempo, a partir das décadas iniciais do século XX, a questão da influência da mídia fonográfica no trabalho dos poetas-letristas ficou mais acirrada e mais clara. Com a notoriedade e reconhecimento através da canção popular, o poeta-letrista ou como preferem chamar “compositor-letrista”, tornou-se mais conhecido do grande público. Fruto do trabalho feito nas letras de música, o poeta teve também o interesse do público direcionado para seus livros. Muitos desses livros, além de poemas, trazem também letras de canções com os diversos parceiros. Não querendo dizer que o suporte “livro” para a poesia tornou-se obsoleto ou mesmo ineficiente. Porém, fica bastante claro que a poesia com o suporte musical e fazendo uso das diversas formas de divulgação deste produto ganhou muito mais adeptos. Haja vista a quantidade de poetas-letristas que somente conseguiram projeção através da letra de música e/ou em muitos casos, uma projeção muito maior à nível popular como foi o caso de Vinícius de Moraes, que havia publicado em 1933 (aos 19 anos) seu primeiro livro de poesias: O caminho para a distância. Caso inverso aconteceu com o poeta-letrista Paulo César Pinheiro, que após anos e anos de trabalho de letra de música, publicou seu primeiro livro aos 27 anos “Canto brasileiro” em 1976. A título de curiosidade citarei apenas alguns autores e alguns de seus livros: “Canto brasileiro”, “Viola morena” e “Atabaques, violas e bambus” de Paulo César Pinheiro; “Tropicalismo para principiantes” e “Os últimos dias de Paupéria – Do lado de dentro” (póstumo) de Torquato Neto; “Inquisitorial” de José Carlos Capinam; “Punhos da serpente”, “Palávora” e “O beijo da fera” de Salgado Maranhão; “O surfista no dilúvio” de Sergio Natureza; “Asas” e “Mundo delirante” de Abel Silva; “Canção de Búzios” de Ronaldo Bastos; “Poemas & canções” de Ana Terra; “A palavra cerzida”, “Mar de mineiro”, “Segunda classe” e “Beijo na boca” de Cacaso; “Urucum X fumaça”, “Pipa”, “Trincheira de espelhos” e “Poeta vagabundo” de Xico Chaves; “Cemitério geral”, “Casa de pássaros”, “Caminho do meio” e “3X4” de Ivan Wrigg; “O gavião e a serpente” de Murilo Antunes; “Na busca do Sete-estrelo”, “Verão vagabundo”, “Piquenique em Xanandu” e “Por mares nunca dantes” de Geraldo Carneiro; “Motor” de João Carlos Pádua; “A marca do Zorro” de Tite de Lemos; “O canto do homem cotidiano” e “tapete do tempo” de Ildázio Tavares; “Me segura que eu vou dar um troço” de Wally Salomão; “Um cara bacana na 19ª” de Aldir Blanc; e ainda diversos poetas como Hermínio Bello de Carvalho, Chacal, Bernardo Vilhena, esses três com vários livros publicados.

Alguns poetas enveredam por outros gêneros literários ou mesmo vieram de determinados gêneros e navegaram na canção popular: Sérgio Cabral (biografia); Nei Lopes (O samba na realidade); Paulo Coelho (misticismo); Abel Silva (romance “Afogados”, contos “Açougue das almas); Oduvaldo Viana Filho (teatro); Guarniere (teatro); Ruy Guerra (cinema); Luiz Galvão (memórias) e Márcio Borges (memórias).

Há outros que pouco se sabe de seus livros, contudo, seus nomes estão sempre atrelados a grande músicos-compositores. Suas letras com tal envergadura literária suprem o nosso afã de conhece-los em livros, nomes como Fernando Brant, Márcio Borges, Vítor Martins, Paulo César Feital, Ronaldo Monteiro de Souza, Lula Freire, Antônio Cícero, Antônio Risério, Duda Machado, Fausto Nilo, Fernando de Oliveira, Paulo Emílio, Climério e Jorge Salomão, dentre muitos outros, quase todos com livros publicados.

Há o caso de poetas consagrados que se deixaram levar nas asas leves da canção popular, seja colocando letra em música ou mesmo cedendo seus poemas para serem musicados: Carlos Drummond de Andrade, Affonso Romano de Sant’Anna, Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Ferreira Gullar.

AS GERAÇÕES DE LETRISTAS

A título de curiosidade citarei alguns letristas que compõem as diversas gerações, sendo as mais recentes as que atuam entre os anos 1960 e 2005. É claro que muitos letristas ficarão de fora, isto por vários fatores: esquecimento, falta de conhecimento da obra deles etc.

1ª Geração: (1840/1910)

Araújo Porto-Alegre, Casimiro de Abreu, Pedro de Alcântara, Albuquerque Medeiros, Mauro de Almeida, Castro Alves, Machado de Assis, Tomás Antonio Gonzaga, Álvares de Azevedo, Arthur de Azevedo, Gonçalves Dias, Joaquim Manoel de Macedo, Francisco Manuel da Silva, Francisco Paula de Brito, Gonçalves de Magalhães, Laurindo Rabelo, Olavo Bilac, Vilela Tavares, Leopoldo Fróes, Bastos Tigre, Melo Moraes Filho e Catulo da Paixão Cearense.

2ª Geração: (1910/1960)

Goulart de Andrade, Guimarães Passos, Jair Amorim, Orestes Barbosa, Hermes Fontes, Olegário Mariano, João de Barro, Mário Lago, Grande Otelo, Mauro de Almeida, David Nasser, Otavio de Souza, Dora Vasconcelos, Dante Milano, Guilherme de Brito, Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Álvaro Moreira.

3ª Geração: (1960/2005)

Vinicius de Moraes, Ronaldo Bôscoli, Mário Telles, Glauber Rocha, Paulo Gracindo Júnior, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Antônio Maria, Oduvaldo Viana Filho, Guarnieri, Lula Freire, José Carlos Capinam, Torquato Neto, Hermínio Bello de Carvalho, Waly Salomão, Ronaldo Monteiro de Souza, Clóvis Mello, Ronaldo Bastos, Ruy Guerra, Márcio Borges, Afonso Romano de Santana, Ferreira Gullar, Carlos Drumonnd de Andrade, Paulinho Tapajós, Fernando Brant, Patativa do Assaré, Nelson Motta, Paulo César Pinheiro e Paulo Sérgio Valle.

4ª Geração: (1970/2005)

Murilo Antunes, Sergio Natureza, Cacaso, Abel Silva, Salgado Maranhão, Aldir Blanc, Antônio Cícero, Rogério Duarte, Antônio Risério, Ildásio Tavares, Tite de Lemos, Sérgio Cabral, Paulo César Feital, Jorge Salomão, Vitor Martins, Ziraldo, Ivan Wrigg, Xico Chaves, Paulo Emilio, Luiz Cláudio Tolomei, Paulo Coelho, Marília Trindade Barboza, Arthur de Oliveira, Nei Lopes, Climério, José Jorge, Luiz Galvão, Duda Machado, Délcio Carvalho, João Carlos Pádua, Antonio Bivar, Geraldo Carneiro, Ana Terra, Sérgio Fonseca, Marco Aurélio, Olívia Hime, Jorge Portugal, Geraldo Amaral e Fausto Nilo.

5ª Geração: (1980/2005)

Bernardo Vilhena, Ronaldo Santos, Chacal, Paulo Leminski, Fred Góes, Patrícia Travassos, Bráulio Tavares, Dudu Falcão, Luiz Carlos Góes, Euclides Amaral, Fernando de Oliveira, Francisco Bosco, Tavinho Paes, Flávio Nascimento, Kico Amaral, Celso Borges, Cristina Saraiva, Rita Altério, Silvia Sangirardi, Guilherme Godoy, Ledusha, Bruno Levinson, Marcelo Dolabela, Cristina Latini, Arnaldo Antunes, Pedro Landim, Cazuza, Mauro Santa Cecília, Marcelo Paes, Fernando Pires Alves, Célio Khouri, Elisa Lucinda, Marco Sacramento, R. R. Juca, Mauro Mendes, Dulce Quental e Alice Ruiz.

Certa vez, João Cabral de Mello Neto disse que Vinícius de Moraes tinha negado a poesia quando começou a fazer letra para música. João Cabral estava quadradamente enganado. Vinícius de Moraes apenas mudou de forma a sua poesia e não há como negar a contribuição dele para o nosso cancioneiro popular, assim como a de todos esses poetas que enfeitam a nossa música popular com seus versos e sendo assim, aprimoram-se também em uma escola tão rica em forma e conteúdo.

Para finalizar cito Augusto de Campos e um estudante japonês via-poundiana: “Independente de quaisquer tendências ou ismos, a poesia é uma família dispersa de náufragos bracejando no tempo e no espaço e consiste em essências e medulas”.

Euclides Amaral
(poeta e letrista – euclidesamaral@superig.com.br )

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