(do livro POLITICA E PAIXÃO,.Rocco, 1984)
Affonso Romano de Sant’Anna
Agosto, mês da raiva e do desgosto.
Eu cão brasileiro, magro e raivoso
Saio mordendo, como o povo
– o próprio osso.
Ou será que mordo o próprio rabo,
Tão faminto estou e tão danado?
Neste caso, não sou cão, sou cobra
Que se devora num vicioso círculo
No chão, onde sobra boca
-e falta pão.
Agosto, mês da danação
Emque a nação uiva seus medos
Aquartelando emoções.
Aos latidos deste mês
Alguns se desesperam: um presidente
Se matou(ou foi deposto)\
Outro renunciou
-babando ébrios remorsos.
Sim, agosto não é mês de Augusto
-imperador de roma, é mês de an gústia
e coma, em que o César do Sul,
-a águia do Catete
se deixou abaer por um corvo
e seus cadetes.
Agosto, em que o tresloucado Janus
-bifronte criatura-
forçou na moldura o quadro,
meteu os pés pelas mãos
açulando a ditadura.
Há quem ache terrível abril.
Ouros atravessam novembro
Com a mão no rosto.
Em agosto , as fúrias desembestam
E fazem delirar o Brasil.
Há vacina contra agosto?
Este mês que nos morde a alma e o bolso?
Quem mordeu o primerio cão?
Foi o Diabo, foi Judas? Foi Adão?
Quem nos deu a original mordida
Ou beijo
-maçã do rosto?
Ante a mordida de agosto
Deve-se latir sozinho? Ou em coro
Num desgoverno de choros?
Que remédio dar à vítima?
Chamar o médico e a polícia?
Há primeiros socorros?
Quanto tempo aguenta o povo a prova
De sensibilidade ao soro?
A raiva é típica do cão?
O azaar é tipico de agosto?
Não. Também morcegos e ratos
Gatos e macacos
São capazes de mordedura,
Mas se a hidrofobia ataca
O cão de guarda
-caímos na ditadura.
Cão tinhoso não anda aceso,
Embora viva um interno inferno,
Vaga apagado e escuo,com o rabo baixo
E orelha murcha ao pé do muro.
É duro ser cão de terceiro mundo,
Cão mendigo, virando latas e bancos,
Empestado de dívidas, imundo,
Batendo aflito em estranhas portas
E enxotado pelos fundos.
Porque agosto,
Há um comício de cães danados
No latido dos jornais.
Porque agosto,
A “raiva paralitica” das praças
E a “raiva furiosa” das massas
Podem engatar em cópulas fatais.
Porque agosto,
Lá vou eu, preso por ser cão,
Preso por não ter pão,
E neste bestiário
Mordo na própria sombra
A sombra do adversário.
Por isto,
Cão operário rosno
Pro meu salário,
Que diáriamente me come.
Cão patrão
Vou salivando agosto e angústia
Nas cercas do calendário.
Cão politico
Discurso louco prá lua,
Lembrando os dias antigos
Em que fui veterinário.
Cão Quixote
Pego lápis e lança,
Subo um caixote de rimas
E num comício de dentes
Mordo o pé do presidente
E ao ministro das finanças
Mordo-lhe a pança.
O poeta ensandeceu, está febril,
Pegou o “vírus das ruas”,
Agosto mordeu-lhe o verso
E onde havia poesia
Ladra agora a hidrofobia,
Pois neste agosto de fúrias
Somos todos cães danados
E o Brasil
-um canil.