A ARTE E A HISTÓRIA DA ARTE: CAMINHOS E DESCAMINHOS NA PÓS-MODERNIDADE
A sociedade ocidental atravessa agora, é possível, um momento de rupturas profundas no modo como constrói seus saberes e se relaciona com eles. Rupturas que nos permitem pensar a desordem de uma ordem construída sob os auspícios de um pensamento que se propõe científico e de uma construção de verdade que obedece ao modelo teleológico cristão. A bem da verdade, e a ruptura está em também questionar a verdade, fé e ciência sempre se ligitimaram, apesar de se pretenderem opostas. A ciência, da mesma forma que a fé cristã, procura a explicação do “imundo” a fim de arquitetar o “mundo”; pretende a ordenação daquilo que não se ordena e que muitas vezes sofre a ação do acaso (não seria, talvez, o acaso a única ordem possível?).
A manifestação artística também passa por estas rupturas. Segundo Teixeira Coelho, “para a pós-modernidade, não haverá mais essa distinção entre ambos os procedimentos. A arte não mais combate a ciência ou a tecnologia, como acontecia nos tempos modernos” (1986, p. 105). Aqui se faz necessária uma pequena parada para refletirmos dois conceitos importantes, apesar de duvidosos: os de modernidade e pós-modernidade.
Dizer o que é moderno e o que é pós-moderno constitui-se em uma tarefa bastante complexa. Primeiramente porque não existe um consenso sobre esta questão, e depois porque aceitar o (pós)-moderno é concordar com uma linearidade questionada por aqueles que se dizem pós-modernos; mas ainda assim tentaremos. Fazendo uso do já citado texto de Teixeira Coelho, o “projeto de modernidade” tem início na Europa do século XVII, e “o início desse projeto estaria na distinção clara de três domínios anteriormente imbricados num único: ciência, arte e moral (…)” (COELHO, 1986, p. 15). É no contexto da modernidade que surge a História da Arte, com o objetivo de lançar um discurso “científico” sobre um saber e um fazer que se pretendia contrário ao saber e fazer da ciência, já que, segundo Maria Bastos Lúcia Kern (1999, p. 110), a emergência da História da Arte ocorre no século XVIII, com Winckelmann. Assim sendo, o surgimento da sociedade disciplinar é uma das características da modernidade, assim como a construção de verdade da ciência. Da mesma forma, pode-se dizer que o pensar dialético é uma construção que se realiza na modernidade .
Já no plano da arte, a ruptura moderna inicia a ocorrer na maneira como a sociedade irá se relacionar com o artista. Segundo Teixeira Coelho (1986, p. 40-43), citando Baudelaire, até o século XVIII o artista tinha o seu fazer movido pelos “princípios da coletividade”, no caso, a Igreja Católica. É a partir do século XIX que se aceita a subjetividade do artista, isto é, ele passa a ser o responsável por seu fazer, “o singular predomina sobre o coletivo” (COELHO, 1986, p. 41). Aqui cabe uma pequena reflexão. A aceitação da subjetividade do artista coincide com o surgimento de um saber (o da História da Arte) que depositará integralmente neste a responsabilidade da obra, excluindo a influência do contexto social. É neste momento que ocorre a deificação do artista, que passa a ser encarado como um “gênio”, alguém além do seu tempo, ou até mesmo um louco que, na sua linguagem carregada de símbolos, fala de algo que só ele pode ver. Esta forma de encarar o fazer artístico e seus executores só vai mudar a partir da segunda metade do século XX. Parte da responsabilidade por esta mudança recai sobre a “Escola dos Annales”, que permitiu à História travar um diálogo interdisciplinar com outros saberes, influenciando conseqüentemente alguns historiadores da arte, que passaram a buscar na Sociologia, Economia ou na Antropologia elementos de análise que melhor lhes permitissem compreender o fazer artístico, surgindo assim saberes como o da História Social da Arte ou da Antropologia da Arte. Mais adiante discutiremos melhor as novas tendências da História da Arte.
Ainda segundo Teixeira Coelho, o artista do século XIX será percebido como um herói sem causa, que fala exclusivamente a partir do seu próprio Eu, diferentemente do artista do século XX, que passa a ser aquele que abraça as causas sociais, o artista ideologicamente engajado. É claro que estas classificações correspondem exclusivamente à sociedade ocidental, e que o fortalecimento de um olhar sobre o artista não significa o desaparecimento dos outros olhares. Estes continuam presentes na trama social.
Em oposição ao moderno que aqui apresentamos, está o pós-moderno, que no plano dos saberes caracteriza-se pelo questionamento da lógica científica. Os pós-modernos defendem a desconstrução da “verdade”, assumindo posturas relativizadoras. Tais posturas terão conseqüências no fazer artístico e no pensar histórico do fazer artístico. Conseqüências que não podem ser homogeneizadas, dado que “a pós-modernidade assume em cada linguagem um aspecto diferente” (COELHO, 1986, p. 83), principalmente na arte, já que “manifestações universais não as há mais raras do que na arte” (HAUSER, 1984, p. 76). Porém, é possível apresentarmos uma ruptura que caracteriza o fazer artístico desta realidade que aqui chamamos de pós-moderna. A partir do artigo de Annateresa Fabris (1998), é possível concluirmos que na Modernidade o fazer artístico – e principalmente o das artes plásticas – caracteriza-se pela produção da “imagem especular”, isto é, a obra de arte enquanto objeto de contemplação. Segundo esta autora, “a idéia clássica da janela é substituída pela interação permanente entre imagem e modelo, pela possibilidade de penetrar no interior da imagem, que se transforma em lugar, ao ver abandonada a bidimensionalidade à qual estava condenada” (FABRIS, 1998, p. 223). É o caso, por exemplo, das instalações, onde o espectador, além de ver a obra, entra nela, sente-na em seu corpo, toca-a e, em alguns casos, pode até modificá-la. Já no plano teatral, a pós-modernidade pode se caracterizar pelo princípio do “público participante”, isto é:
o que o teatro pós-moderno fará é deixar de apresentar espetáculos, feitos por alguns e consumidos por outros, para organizar experiências teatrais onde não há separação entre palco e platéia (onde não há palco, nem platéia: todos atuam, ninguém apenas assiste) e onde não há ‘coisas’ representadas mas ações presentes, presentificadas, presentadas, encenadas aqui e agora.(COELHO, 1986, p. 85)
Também na literatura a influência da pós-modernidade se faz sentir quando nos deparamos com textos onde o próprio leitor “escreve” sua estória fazendo opções que lhe darão diferentes fins, ou onde a estória apresenta-se de uma forma incerta, sem uma linearidade que lhe dá um início, meio e fim. O mesmo acontece com a poesia, que passa por um processo de desnormatização, onde o que importa é o fazer potico, o corpo do poema, e não mais a mensagem do poema; onde a poesia perde os versos, a forma e, muitas vezes, a própria palavra, aproximando-se muito das artes plásticas. As próprias artes plásticas assumem esta característica, onde o que passa a importar mais é o processo de produção artística do que a obra em si mesma, explicando-se então a efemeridade de muitas obras de arte.
Neste contexto, como deve o historiador da arte proceder? Como historiar um fazer artístico que já não é mais o mesmo daquele que vigorava no século XVIII, época em que a História da Arte se desenvolveu, como já vimos? Segundo Maria Lúcia Bastos Kern, a História da Arte vem passando por uma crise que obriga os historiadores da arte a experimentar “como os artistas, novos métodos de abordagem do objeto, fugindo assim da História da Arte tradicional dos grandes enunciados e acontecimentos” (KERN, 1999, p. 107). Gostaríamos de apontar aqui algumas possibilidades de reflexão sobre a História da Arte, tendo como princípio os conceitos desenvolvidos por Michel Foucault em seu livro “A Arqueologia do Saber” (1995), e o artigo de Marcos Napolitano, “História da Arte, História das Artes, ou Simplesmente História?”
O historiador da arte sempre esteve muito vinculado à interpretação daquilo que o artista quis dizer com determinada obra de arte e à própria personalidade do artista que, como já dissemos, era percebido como um gênio, alguém além do seu tempo. Foi a própria História da Arte que, com seu discurso pretensamente científico, e carregado de conceitos positivistas, criou a pessoa do gênio – que corresponde à figura do herói na História Militar – e as escolas artísticas. Coube à História da Arte a ordenação deste “mundo”, a sua disciplinação. Porém, o princípio de totalização e a figura do precursor são elementos falhos para qualquer tipo de pensar e fazer historiográfico. Segundo Foucault, ao se analisar historicamente um saber e/ou um discurso, e a arte é um saber e, consecutivamente, gera discursos, deve-se considerar a “épistémè” da época, isto é, quais as “condições de possibilidades” que permitem que se diga algo sobre alguma coisa. Por exemplo, quando o historiador tenta compreender a história das pintura, não deve se deter apenas em tentar compreender o que o pintor quis dizer com seus quadros, mas como pôde dizer e o que pôde dizer. E é importante que se perceba também que não é apenas o pintor que diz, mas dizem também as “condições de possibilidades” de sua época. Segundo Marcos Napolitano, o historiador deve “examinar as condições de emergência de um determinado gosto e juízo“; e conforme Kern, “é necessário reconstruir a intricada rede de relações microscópicas de cada produto artístico” (KERN, 1999, p. 109). Não é apenas o artista que produz, mas influeciam na sua produção a rede de distribuidores, as concepções culturais de sua sociedade, as condições técnicas para determinada produção, os interesses comerciais, etc. Cabe ao historiador da arte, conforme defendem Napolitano e Kern, observar e compreender todos estes elementos, transformando assim a obra de arte em um documento, e não mais em monumento, dessacralizando-a, já que o documento carrega consigo “as tensões e configurações do seu tempo“.
Uma outra questão a ser questionada é a da linearidade. A concepção linear da História, e da História da Arte, obedece ao princípio evolutivo da dialética ou do positivismo, o que questionamos aqui, já que, conforme Foucault em sua “arqueologia do saber”, a construção de saberes se dá dentro de um regime de rupturas. A arte, como qualquer outro saber, não foge a este princípio e, segundo Arnold Hauser, “nada se modifica mais radical e extraordinariamente do que a arte e nada altera tão rapidamente e de modo ostensivo as suas formas como a expressão artística” (HAUSER, 1984, p. 76).
Para concluir, o que queremos afirmar aqui é que, da mesma forma como a arte, também a História da Arte sofre a interferência de uma nova “épistémè” que está se constituindo e que, apesar de ainda pouco compreendida, chamamos de pós-moderna; sendo que esta interferência obriga ao historiador da arte refletir novos conceitos a partir de uma perspectiva relativizadora e interdisciplinar, o mesmo acontecendo com o historiador de qualquer outro objeto, já que historiografar a arte é função do historiador e não do artista.
Viegas Fernandes da Costa*
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BURKE, Peter. A Revolução Francesa da Historiografia: A escola dos Annales, 1929-1989. Tradução por Nile Odália. São Paulo: UNESP, 1991.
CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador. Trad. por Reginaldo de Moraes. São Paulo: UNESP, 1998.
COELHO, Teixeira. Moderno pós Moderno. Porto Alegre: L&PM, 1986.
FABRIS, Annateresa. Redifinindo o conceito de imagem. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, 1998, p. 217-224.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 4 ed. Trad. por Luiz F. B.. Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
HAUSER, Arnold. A Arte e a Sociedade. Trad. por. Maria M. Morgado. Lisboa: Presença, 1984.
KERN, Mara Lúcia Bastos. Os impasses da história da arte: interdisciplinaridade e/ou especificidades do objeto de estudo? Revista da SBPH, Curitiba, n. 16, 1999, p. 107-113.
NAPOLITANO, Marcos. História e arte, história das artes ou simplesmente história? (mimeo).