Adaptação dirigida por Jeferson De e estrelada por Maria Gal revisita a potência literária, política e humana da escritora que transformou a favela do Canindé em voz mundial.
A história de Carolina Maria de Jesus, autora de “Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada”, chegará aos cinemas pela primeira vez. O longa, provisoriamente intitulado “Carolina – Quarto de Despejo”, dirigido por Jeferson De (“Doutor Gama”) e com roteiro de Maíra Oliveira, promete reconstruir a vida da escritora negra que transformou sua vivência na favela do Canindé, em São Paulo, em uma das obras mais impactantes da literatura brasileira. A atriz Maria Gal interpreta Carolina — papel que exigiu transformações profundas da atriz.
As primeiras imagens da produção foram divulgadas na quinta-feira (20), Dia da Consciência Negra. Maria Gal, que também assina a produção, descreve o papel como um mergulho emocional e físico. “Quando eu aceito transformar meu cabelo pela história de Carolina, não estou apenas mudando o visual, estou abrindo espaço para acessar uma verdade que vai além da minha. Estou entrando no território dessa mulher gigante, que ainda hoje é uma das autoras mais importantes da literatura mundial. Carolina não é só um papel, ela é uma força literária que atravessou séculos, fronteiras e desigualdades, escrevendo de um lugar de silêncio imposto e, mesmo assim, fazendo ecoar a própria voz para o mundo inteiro”, afirma.
Adaptação de um clássico que marcou o país
Publicado em 1960, “Quarto de Despejo” retratou, de maneira crua e poética, as desigualdades do Brasil dos anos 1950 e 1960, expondo a fome, o racismo, a violência e a urgência de direitos básicos. O livro vendeu mais de 3 milhões de exemplares e foi traduzido para 14 idiomas. Tornou-se best-seller em 11 dos 16 países em que foi publicado e fez de Carolina a primeira escritora negra brasileira a alcançar reconhecimento internacional — mesmo com apenas dois anos de educação formal.
O filme pretende reconstruir algumas camadas de Carolina, como a catadora de papel, a mãe solo, a mulher pobre e retinta, e também a intelectual autodidata que gostava de música clássica, refletia sobre política, sonhava com elegância e reivindicava cidadania por meio da escrita. “A história da Carolina são muitas histórias. Infelizmente 1h30 de filme não dá conta”, afirma Maria Gal. “Então, enquanto cidadã, mais do que atriz até, me vi na obrigação de buscar fazer essa história acontecer”, acrescenta.
A produção é assinada por Move Maria, Raccord Produções, Buda Filmes e Globo Filmes, e reúne nomes como Raphael Logam, Clayton Nascimento, Liza Del Dala, Carla Cristina, Ju Colombo, Jack Berraquero, Fábio Assunção, Alan Rocha e Thawan Lucas.



Fotos: Ellen Soares/reprodução/gshow
Uma heroína plural, urgente e atual
O projeto é fruto de uma construção de mais de uma década. “É um projeto de 11 anos. Agora estamos filmando e está sendo um momento muitíssimo especial e histórico. Estamos no mês da consciência negra, novembro, e com esse propósito de fazer um grande filme, um filme que a gente entende que a Carolina merece”, contou Maria Gal ao gshow.
A atriz destaca a importância da representatividade também por trás das câmeras. “Estamos felizes em contar essa história pela nossa perspectiva. Eu, como mulher negra e retinta. O Jeferson De como um homem negro também. Temos o propósito de contar essa história de forma muito especial, como a Carolina gostaria de ser lembrada pela grande escritora que ela é”, diz.
A obra de Carolina, segundo Gal, é também um espelho do país. “É também falar sobre nossa ancestralidade, nossos pais, nossos avós que lutaram muito para a gente chegar onde chegou. Quantas e quantas Carolinas a gente tem nesse país? Ela já falava, na década de 50, sobre temas que são urgentes, que a gente ainda tá engatinhando hoje”, analisa.
E enumera: “A educação, a questão da em segurança alimentar e a fome; a falta de mobilidade urbana e de acesso digno à cidade; retratava a urgência da educação; violência doméstica; o protagonismo feminino e negro em uma sociedade que insistia em apagá-la.”
Carolina, Clarice e o apagamento
Maria Gal também destaca o apagamento histórico da escritora e a urgência de resgatá-la. “É urgente que o país conheça muito mais a Carolina”, afirma. A atriz relembra como iniciava as reuniões para viabilizar o longa: “‘Você já ouviu falar sobre Clarice Lispector?’ Todo mundo conhecia. Quando voltava a perguntar. ‘E Carolina Maria de Jesus, vocês já ouviram falar?’ A maioria das pessoas não conhecia”, relata. Para ela, isso simboliza o quanto a autora ainda precisa ser reconhecida como figura central na formação literária brasileira.
Gal também revisita o emblemático encontro entre Carolina e Clarice. “Carolina fala para a Clarice: ‘Sou muito fã do seu trabalho, você escreve elegante’. E aí, a Clarice responde: ‘E você escreve a realidade’. E é isso. A Carolina escrevia essa realidade concreta”, recorda.
Um dos debates recorrentes sobre a representação de Carolina é a forma como suas imagens são lembradas: quase sempre com roupas puídas e lenço branco na cabeça. “O lenço tem esse simbolismo muito grande na vida dela. Inclusive, a gente faz essa provocação também no nosso filme”, conta a atriz.
Legado vivo
Mesmo décadas após sua morte, Carolina segue inspirando reflexões sobre desigualdade, literatura, política, estética e identidade. “Aprendi, com a Erika Hilton, a acordar e pegar o que ela escreveu naquele dia em ‘Quarto de Despejo’. Então a vejo quando passo na rua e tem uma pessoa numa situação de pobreza, de fome. Quando vejo a questão política no país. Quando não vejo nossos protagonismos em todo lugar. E, ao mesmo tempo, quando vejo poesia, porque a nossa cultura é tão rica, é tão diversa, é tão urgente”, analisa Gal.
Ainda sem data de estreia, o filme “Carolina – Quarto de Despejo” chega para ocupar o espaço que a escritora sempre mereceu no cinema nacional: o de protagonista de sua própria história.
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