Em livro fundamental de 1978, Candeia e Isnard, dois mestres portelenses, escreveram: “Oriundo das classes operárias e média inferior, o sambista sempre foi o grande baluarte das escolas de samba. Durante muitos anos ele lutou para que sua cultura fosse reconhecida. Marginalizado e perseguido pela polícia, o sambista sofreu no sangue a perseguição aos seus hábitos e costumes.
De origem pobre, o sambista surgiu do morro e das favelas, das casas simples do subúrbio e aos poucos foi mostrando à cidade o valor e a contribuição que ele tinha para dar à arte popular”. O trecho foi escrito em Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz (Carnavalize, 2023, 2ª edição), que veio a público no mesmo ano do falecimento do mestre Candeia, cujas ideias críticas dos rumos do carnaval no Rio de Janeiro construíram o departamento cultural da Portela e seu Museu Histórico, assim como o levaram a idealizar, junto a outros sambistas, o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba (Granes) Quilombo, três anos antes, em 1975.
Já em outro livro, de leitura obrigatória sobre a história do samba em Curitiba, João Carlos de Freitas recolhe o depoimento de Maé da Cuíca, dos maiores nomes do samba curitibano: “Tínhamos medo porque naquela época havia muita coisa. Sambista, preto e pobre eram muito discriminados”.
O contexto da frase é o da fundação da Escola de Samba Colorado, que começou as suas atividades espontânea e informalmente em 1945, conforme relata Freitas em seu estudo denominado Colorado: a primeira escola de samba de Curitiba (Do Autor, 2009).

A criação das duas escolas, hoje, permite perceber um encontro possível entre lutas e expressões de nosso povo, que une geografias e tempos históricos distintos, as quais exaltam a cultura popular sem a qual não podemos ser povo e decorrem da classe trabalhadora da qual somos filhos.
Assim é que dezembro de 2025 torna-se o mês em que comemoramos não apenas o Dia Nacional do Samba, no dia 2, mas, também, os 50 anos da fundação Granes Quilombo, datada de 8 de dezembro de 1975, no Rio de Janeiro. Já em Curitiba, é oportunidade para relembrarmos os 80 anos da Escola de Samba Colorado, considerada a primeira do estado do Paraná.
Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo (1975)
O texto de Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz, de Candeia e Isnard, que já mencionamos, é dos mais autênticos guias aos quais poderíamos recorrer para resgatar a memória, senão da Quilombo, ao menos do contexto que a gerou. Não é o caso de fazermos nem uma história da agremiação nem um resumo do livro. Mas vale a pena resgatarmos algumas de suas ideias, no intuito celebrativo do cinquentenário da escola, embora também com o objetivo combativo de defesa de nossa cultura popular.
Como sabido, Candeia foi dos maiores sambistas da história do Brasil. Campeão do carnaval pela Portela com três sambas-enredos de sua autoria, tendo levado à avenida mais outros três (todos entre 1953 e 1965), conseguiu gravar seus discos – alguns deles antológicos – apenas na década de 1970.
Sua trajetória é riquíssima, apesar de ter falecido muito cedo, aos 43 anos: do violão à capoeira, do cavaquinho ao candomblé, foi policial civil, também vítima de tentativa de assassinato, após incidente de trânsito, cujos tiros lhe implicariam uma paralisia dos membros inferiores, a aposentadoria e o final da vida dedicada ao samba e à militância social.
Ao lado de Isnard, idealizador do Museu Histórico Portelense, que recolheu vários depoimentos de membro históricos da escola de samba de Oswaldo Cruz, e membro do departamento cultural da Portela, Candeia pôs no papel um conjunto de levantamentos, propostas e críticas, depoimento vivo e reflexão vibrante sobre a história e os descaminhos que pareciam caracterizar as escolas de samba.
No livro, os autores resgatam as raízes do samba no lundu, no jongo, no caxambu e na capoeira; historicizam a trajetória da Portela e seus carnavais, ressaltando o papel de homens e mulheres no passar do tempo da escola, como Paulo da Portela, Antônio Rufino, Antônio Caetano, Dona Esther, Dona Neném, Dona Martinha e tanta gente mais; descrevem as características das escolas de samba; apresentam curiosidades sobre sua pesquisa; refletem sobre a cultura das escolas; sobre a criatividade de seus protagonistas, os sambistas; sobre sua vida socioeconômica; sobre seus dilemas organizacionais; sobre seu futuro; e terminam por trazer uma fundamentação crítica, a partir de investigação bibliográfica e de entrevistas, que concluiu com a ideia de que “a raça negra nos deu um povo”.
São 10 partes que trazem por encerramento um documento sobre o Quilombo, exposto como um movimento a defender que “o que existe de próprio na arte popular nós pretendemos preservar”.
Quilombo – referência explícita, em plena década de 1970, à resistência afro-brasileira do tempo da escravidão e do colonialismo – posicionava-se contra toda “forma alienada de cultura”, reivindicando “as raízes da arte negra brasileira”, denunciando o poder econômico que se apoderava das escolas de samba. Denunciava também sua modernização em detrimento do desenvolvimento da cultura do povo, bem como a subsunção da criatividade do sambista pela profissionalização de tipo capitalista. Daí a frase que aparece no final do livro: “Quilombo é uma greve de sambistas contra a poluição do meio”.
Isto porque o Quilombo era uma escola de samba que se opunha à competição carnavalesca, ao aceleramento rítmico do samba, à invasão das classes médias e altas, via de regra brancas, nas escolas de samba e à tremenda alienação cultural imposta à cultura popular por via da indústria do entretenimento e suas fórmulas estrangeirizadas. Não podemos esquecer os versos de Candeia em Sou mais o samba: “Eu não sou africano, eu não/ Nem norte-americano/ Ao som da viola e pandeiro/ Sou mais o samba brasileiro”.
Todo o livro de Candeia e Isnard está recheado de críticas às mais diversas questões que envolvem o mundo do samba e relê-las, nos dias atuais, é pôr à prova tanto sua influência quanto os rumos do samba e do carnaval.
Não bastasse a força dos argumentos e o conhecimento que demonstram, carregam no estilo do texto um caráter brechtiano-propagandista (no sentido de elaboração mais detida que dialoga diretamente com o público leitor alvo) como podemos ler no trecho a seguir, escolhido por todos para representar essa dimensão crítica de Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz e, por extensão, do Quilombo: “Compositor (você é um sambista), dê maior importância e valor a você mesmo, acredito em suas potencialidades e continue cantando aquilo que sai de dentro do seu interior, reflexo do seu ambiente e de seu meio. Valorize e ame seu trabalho”.
Não conseguimos deixar de remeter, com essa ideia, ao que o próprio Candeia escreveu no samba Dia de graça, que aborda temas que reaparecem a longo do livro: “Negro, acorda, é hora de acordar/ Não negue a raça, torne toda manhã dia de graça/ Negro, não humilhe nem se humilhe a ninguém…”
Hoje, não sem imensas dificuldades, o Granes Quilombo continua existindo, sob a liderança de Selma Candeia, filha do mestre sambista que o fundou. A resistência de sambistas permanece, portanto, ao lado das fundamentais lutas contra o racismo e a exploração capitalista da arte popular. 50 anos de história que justificam plenamente a razão de ser desse Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba e o seu exemplo a ser continuamente resgatado.
Escola de Samba Colorado (1945)
Outro livro que ficaríamos tentados a resumir é o de João Carlos de Freitas sobre a Colorado. Seu autor, um militante da causa antirracista em Curitiba, advogado e sambista de mão cheia, nos brindou com sua pesquisa, a qual promete receber uma segunda em edição em breve, pelo que aguardamos ansiosamente. O texto nos oferece uma potente reflexão sobre o negro em Curitiba, o carnaval com suas histórias e, especialmente, a trajetória da Colorado.
Há muito, ainda, por se investigar para recompor o quadro histórico do samba e do carnaval popular em nosso estado e cidades. Mas o ponto de partida, sem dúvidas, é o reconhecimento das histórias já contadas e recontadas. O caso da Colorado é emblemático e torna cada vez mais enfadonha a pergunta que todo ano os meios de comunicação curitibanos fazem: “Afinal, Curitiba tem samba?”.
Não só tem, como há no mínimo 80 anos de sua história. Com atividades iniciadas em 1945, tendo se oficializado no ano seguinte, a Escola de Samba Colorado não recebeu praticamente qualquer homenagem no ano de seu octogenário (salvo as exceções populares de sempre que insistem em não esquecer nossa história regional nos bares, rodas e blocos não oficiais de Curitiba) – aliás, nossa cidade e estado são pródigos em produzir esquecimentos, basta lembrar o centenário de baixa intensidade com relação a Dalton Trevisan ou o quase completo silêncio referente ao grande escritor Wilson Rio Apa, que também faria 100 anos em 2025.
A história da Colorado é símbolo de nossa resistência. Entrevistando Ismael Cordeiro, o lendário Maé da Cuíca, membro fundador da escola, João Carlos de Freitas registra a memória do primeiro cortejo, espontaneamente realizado em 1945, com centenas de pessoas acompanhando os 16 sambistas que saíram da periférica Vila Tassi (antigo nome do que hoje conhecemos por Vila Capanema) rumo ao centro da cidade e acabaram por ser bem recebidos, sendo convidados inclusive a tocar no Bar Cometa da rua 15 de Novembro de então.
Formada por operários ferroviários e moradores de uma região de ocupação não integralmente regularizada, a Colorado é representativa de uma parte da história de Curitiba que é ocultada, por contradizer os estereótipos europeizantes que foram produzidos sobre a cidade no último século. Mais do que isso, é uma invisibilização também da capacidade organizativa de nossa periferia, com escola de samba, clube de futebol e cultos religiosos próprios.
Freitas, no seu livro, relata que na primeira diretoria da Colorado tomaram parte, em sua maioria, jogadores do Clube Atlético Ferroviário (que após várias fusões veio a dar no atual Paraná Clube), sinal de um tempo em que nem a música nem o futebol eram profissionalizados como hoje o são. Os nomes que aparecem em seu estudo são os de, além de Maé da Cuíca, também seu irmão Nelson Forquilha, bem como Isaldo Gomes, Nelson Gomes, Mario Cantarelli, Mário Ferreira, Ivo Cordeiro, Eliseu Norival e Clemencial Rodrigues, este último seu primeiro presidente.
Também as mulheres fizeram parte, desde o início, da agremiação agora octogenária, o que não acontecia à época. É o que ocorre com a pioneira Santa, mas continua depois com os nomes de Sônia, Marlene, Nice, Maria Cleusa, Eni, Roselise, Roseli, Mariusa e muitas mais.
Tantas outras personagens e histórias poderiam ser lembradas, como as de Chocolate, baliza, compositor e futuro fundador da Escola Ideais do Ritmo; do mestre-sala, ritmista e compositor Mamangava; dos três surdistas diferenciados que eram a alma da bateria nota 10, Bira, Binho e Mutum; os compositores Claudio Ribeiro e Homero Reboli, que se sagraram campeões do festival de novos compositores da Mangueira, em 1977, defendendo seus sambas acompanhados por um grupo conduzido por Maé da Cuíca; e assim infinitamente.
Todo esse repertório é delinquentemente apagado da história de nossa cidade e estado, como se aqui não fosse possível falar de cultura popular, resistência antirracista e organização operária nos nossos currículos escolares e nas políticas de memória pública.
É impressionante a casa 23 da Rua Pedro de Araújo Franco, onde residiu Maé da Cuíca, apesar de estar de pé embora abandonada, ainda não ter sido objeto de nenhuma política de defesa de nosso patrimônio histórico material e imaterial. Não há o reconhecimento do circuito curitibano do samba nem na antiga Vila Tassi nem nos arredores do atual Boteco Amigos do Barba. Sequer ocorreu qualquer homenagem com nomeação de rua com o nome de Ismael Cordeiro ou demais sambistas da cidade. E ainda que haja praça com nome de Chocolate (Praça Mansueden dos Santos Prudente, no Capão da Imbuia), falta sua estátua, assim como a de Maé, Nelson, Mamangava, Soninha, Marlene ou Homero, entre tantos outros. Justiça seja feita, o Bloco de Samba Boca Negra, herdeiro direto dessa história, tem feito o possível para que a sociedade curitibana e sua classe política dirigente se sensibilizem sobre o assunto, mas a tarefa apresenta-se verdadeiramente penosa nesse sentido.
Hoje, a tetracampeã (na verdade, penta, não fosse a disputa anulada de 1971) Colorado não existe mais como escola, desde que deixou de desfilar em 2001. Mas, não há dúvidas, continua viva nas 10 escolas de samba em atividade na cidade e todas as demais do estado, bem como nos blocos, rodas, grupos, compositores e sambistas que, às vezes mesmo sem o saber, carregam nas mãos e nos pés o que a Colorado proporcionou desde quando passou a existir, há 80 anos.
Celebração como combate popular e pensar brasileiro
Como disse o pensador revolucionário Frantz Fanon, outra personagem de quem comemoramos o centenário este ano, “não há um combate cultural que se desenvolveria lateralmente ao combate popular”. O contexto da frase se encontra na sua obra clássica Os condenados da terra e é bastante distinto do que vivemos com a história do samba no Brasil.
Entretanto, com ela se comunica pois a libertação da Argélia e a do povo brasileiro passam pela arte popular cerrar fileiras com os interesses do nosso próprio povo. Cremos que ter sido possível ler isso no texto de Candeia e Isnard, quando diziam que “para se falar em samba temos que falar em negro, para se falar em negro temos que contar sua árdua luta através de muitas gerações, erguendo o seu grito contra o preconceito de raça e de cor, herança da escravidão”.
Também ficou famosa a frase de Roberto Gomes naquele que é dos primeiros – e escassos – livros de filosofia autenticamente brasileira, Crítica da razão tupiniquim: “Do ponto de vista de um pensar brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos ensinar que o senhor Immanuel Kant, uma vez que a filosofia, como o samba, não se aprende no colégio”.
Neste caso, também a história da Colorado, na Vila Tassi dos ferroviários, nos educa e civiliza, porque o pensar curitibano e paranaense aprende com coisas que o colégio parece que nunca vai ensinar. A história de nossas classes populares é pujante, sob esse viés, e tudo indica que o paralelismo entre o livro filosófico e a obra de um Maé da Cuíca, cantando sua vila em contraste com a cidade, venha a cobrar ainda mais razão agora que estamos tomando mais plena consciência dessa história.
Celebrar a história da Colorado e do Quilombo é apostar no combate. O mesmo que mobilizou Gogó de Ouro, sambista e capoeirista carioca radicado em Curitiba desde 1984, a organizar anualmente a roda do Dia Nacional do Samba, mesmo que várias vezes criminalizado pela polícia. Agora, comemorando seus 40 anos na cidade, foi homenageado por uma coalizão de sambistas, encabeçados por Claudio Ribeiro, o que pôde ser visto por todos no dia 2 de dezembro em plena rua 15 e, depois, no samba de rua do Bar Brasileirinho também em sua celebração do dia 6, sábado último. A edição especial do “Jornal do Samba”, com a capa estampando a foto do sambista e a manchete “40 anos de Gogó de Ouro” ficarão como documento histórico para a posteridade.
O mesmo pode ser dito para a roda organizada pelo Bloco de Samba Boca Negra, no dia 22 de novembro, em referência ao Dia da Consciência Negra (20 de novembro), que ocorreu na casa histórica do mestre Maé da Cuíca. Ali, o território sagrado do samba foi o protagonista e a bandeira da defesa de sua patrimonialização histórica foi hasteada e tremulou, sobre diversos representantes do mundo do samba curitibano, de blocos a escolas, de conjuntos a rodas.
Os 80 anos da Colorado e os 50 anos do Quilombo são uma celebração como combate cultural e uma visibilização histórica como pensar brasileiro. Nosso samba o exige. E se não há política que publicamente estabeleça esse reconhecimento, nós o fazemos, com toda a humildade de nossas forças e toda a paixão de nossos argumentos. Viva a Colorado e viva o Quilombo!
*Ricardo Prestes Pazello é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do Bloco de Samba Boca Negra.
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