TIRO SAIU PELA CULATRA

 

“Entre refrões fáceis e cofres abertos: o sertanejo universitário como vitrine do agronegócio e da política do cachê”

 

Li uma coluna certeira do Xico Sá – Escritor e jornalista, no ICL Notícias hoje. Daquelas que a gente lê com um sorriso torto no canto da boca, meio amargo, meio cúmplice. Ele falava — com a ironia que só ele sabe usar — sobre os milhões despejados em shows sertanejos bancados por prefeituras pobres. Mas o ponto de partida, o estopim de tudo, foi uma tatuagem. Sim, uma tatuagem no toba. Ou, para usar a anatomia alternativa da própria Anitta, no tororó.

Foi Zé Neto, da dupla com Cristiano, quem puxou a briga. Em 2022, em cima de um palco no interior, resolveu atacar Anitta e fazer média com o então presidente Jair Bolsonaro. Esses sertanejos enjoativos universitários, quase todos bolsonaristas. Criticou a Lei Rouanet, encheu o peito de falsa moral, e soltou a frase que atravessou o país como um tiro mal calculado: “A gente não precisa fazer tatuagem no toba pra mostrar que está bem”. Pois bem. O tiro saiu pela culatra — e o que veio a seguir foi uma devassa nos bastidores da farra sertaneja.

Essa semana, a Justiça do Mato Grosso decidiu que o cantor Leonardo terá que devolver R$ 300 mil aos cofres da Prefeitura de Gaúcha do Norte. Recebeu R$ 750 mil por um show em plena pandemia orçamentária. Segundo o Ministério Público, o valor foi superfaturado. E Leonardo é apenas mais um numa lista que virou manchete. Gusttavo Lima, por exemplo, virou o símbolo da farra: contrato de R$ 800 mil aqui, R$ 1,2 milhão ali, 50% do orçamento da cultura de uma cidade inteira lá.

E vamos combinar: esses sertanejos universitários, além de caríssimos, andam cada vez mais enjoativos. Letras repetitivas, melodias genéricas, discursos embebidos em moralismo barato e patriotismo de ocasião. Querem posar de heróis do povo enquanto faturam cifras obscenas — muitas vezes, com dinheiro que deveria ir para escola, hospital, biblioteca, e para cultura local. É como se o Brasil estivesse pagando (caro) para ouvir mais do mesmo.

O tal “efeito tororó” veio na forma de meme, mas ficou sério. Anitta, com seu deboche afiado, jogou luz onde ninguém queria olhar. Revelou que sua produtora também recebeu propostas parecidas — e recusou. O Ministério Público, então, acordou. Vieram investigações em Roraima, Minas, Rio de Janeiro, Bahia, Alagoas. Acho que faltou no Paraná. Teve prefeita chorando em público porque não pôde realizar a “festa do milhão”. Teve cantor chorando em live, dizendo que era injustiçado.

Mas o choro que importa é o do povo, que trabalha o mês inteiro e vê o dinheiro escorrer por caixas de som turbinadas e contratos sem licitação.

Atacaram a Lei Rouanet com fúria. Uma lei que, apesar dos defeitos, ao menos exige projeto, contrapartida, transparência. Preferiram a mamata paralela dos contratos diretos com artistas “amigos”, pagos com verba de gabinete, de cultura, de onde desse. Tudo com aquele verniz de “música do povo”, quando o que se vê é um grande negócio entre empresários e prefeitos.

No fim, foi uma tatuagem quem gritou mais alto que qualquer refrão. Um tororó que lavou a alma e sujou muita papelada.

Como disse Xico Sá, “o Brasil é um país onde a arte começa onde acaba o bom senso”. E eu complemento: e onde termina a paciência com esses modões de sertanejos enjoativos e repetitivos, termina também o cheque em branco da nossa conivência.

Se a música é popular, que respeite o povo.

 

Por Cláudio Ribeiro, jornalista e compositor

 

Compartilhar:

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*