Jorge Amado, Capitães da Resistência

 

“Ignorância com microfone: o perigo do apagamento cultural travestido de moralidade” (artigo de opinião).

 

Num Brasil que tropeça nas próprias sombras, há quem ainda se espante com o espetáculo do ridículo — mas é preciso reconhecer: o grotesco, quando ganha cargo e microfone, deixa de ser piada e vira ameaça.

A vereadora Jéssica Limone, do Partido Liberal de Itapoá, Santa Catarina – sempre lá – é a mais nova estrela de uma constelação que brilha na ignorância e vocifera contra a cultura com o mesmo entusiasmo com que um incêndio consome uma biblioteca. O alvo da vez? “Capitães da Areia”, de Jorge Amado. Sim, o grande Jorge Amado. O mesmo que, com sua pena generosa e crua, deu voz às favelas, aos marginalizados, aos esquecidos pelo Brasil oficial. O mesmo que, se ainda vivesse, talvez não acreditasse no nível da indigência intelectual que grita das tribunas hoje.

A vereadora, embalada pela trilha sonora monocórdia da extrema-direita, resolveu que literatura não deve provocar pensamento, mas alinhar-se à cartilha da moral seletiva. Acusou a obra de “marginalizar crianças” — ignorando, ironicamente, que o livro justamente escancara a marginalização feita por um Estado omisso. O ápice do teatro? Tentou ler um trecho em plenário e tropeçou nas palavras, nos sentidos, nas entrelinhas. Porque quem nunca leu um livro na vida não deveria tentar interpretá-lo para uma plateia — e muito menos para um país.

Mas o mais preocupante não é a ignorância. Ignorância, afinal, é matéria-prima de muitas transformações, se acompanhada de humildade. O que assusta é a arrogância dessa ignorância: ela se ergue em púlpitos, carrega a cruz do autoritarismo, e acredita sinceramente que sua mediocridade deve ser a régua do mundo.

A extrema-direita brasileira tem um projeto. Não é econômico, não é social, tampouco moral. É um projeto de apagamento. Querem queimar livros sem precisar de fósforos — basta a censura embalada no discurso do “cuidado com as crianças”, sempre com “Deus, Pátria e Família.”

Esse lema refletia os principais valores defendidos pelo movimento integralista, liderado por Plínio Salgado na década de 1930, inspirado em ideologias fascistas europeias, como o fascismo italiano.

Mas as crianças que Jorge Amado narrou não foram corrompidas por ele, e sim pela miséria que ele teve a coragem de mostrar. Apontar o dedo para o escritor é desviar os olhos do verdadeiro agressor: a estrutura que perpetua a exclusão.

Jorge Amado era comunista, sim. E daí? Era também um gênio literário, um cronista do Brasil real, um contador de histórias que não agradavam os salões da elite, mas encantavam o mundo. Sua obra foi traduzida em dezenas de línguas. A vereadora, por outro lado, mal consegue traduzir uma frase em bom senso.

É preciso dizer, com todas as letras: esse tipo de ataque à cultura brasileira não é só burrice — é perigo. Perigo de retrocesso, de censura, de emburrecimento coletivo. Hoje querem proibir Jorge Amado. Amanhã, proíbem Drummond. Depois, talvez proíbam pensar.

Mas ainda somos milhões. Milhões que leem, que pensam, que resistem. E que sabem que, enquanto houver livros como Capitães da Areia, haverá também quem se recuse a obedecer à ignorância como se ela fosse lei.

Porque a literatura — ah, a literatura — não pede permissão para existir. Ela sobrevive à censura, aos tribunais morais, e até mesmo aos discursos mais constrangedoramente estúpidos de quem não tem sequer vocabulário para combatê-la.

Jorge Amado, eterno. Jéssica Limone? Transitória como todo vexame político.

 

Cláudio Ribeiro

Jornalista – Compositor

 

 

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