Diretores de Bacurau falam ao Le Monde: “Filme funcionou como catarse”

Para Bacurau, seu terceiro longa-metragem, Kleber Mendonça Filho – 51 anos, antigo crítico de cinema e liderança do cinema que se faz no Recife (PE), no Nordeste – se associou a Juliano Dornelles, que trabalhava até então ao seu lado como diretor de Arte. Conjuntamente, eles se valeram dos filmes de gênero (western, thriller, ficção científica) a que são aficionados para formar um retrato de uma cidade emblemática do Sertão, região desértica e deserdada, à margem do mundo e presa à violência.

Os cineastas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles: “Não era nossa intenção, mas o filme apresenta nossa realidade de forma expressiva” Os cineastas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles: “Não era nossa intenção, mas o filme apresenta nossa realidade de forma expressiva”

Nesta entrevista a Laurent Carpentier, do jornal francês Le Monde (com tradução de Celso Marconi* para o Prosa, Poesia e Arte), Kleber e Juliano, mostram como fizeram uma crítica social a seu país em Bacurau, um filme de gênero. No Brasil, avaliam eles, “o filme funciona como uma espécie de catarse política”. A entrevista foi publicada na edição de 25 de setembro, quando do lançamento do filme em Paris.

 

Le Monde: 500 mil pagantes (espectadores no cinema) após quatro semanas: Bacurau encontra um grande sucesso no Brasil. O que vocês esperam disso?

Kleber: Acredito que, tratando de uma situação de injustiça numa estrutura de western muito clássica – uma pequena comunidade, uma só rua, algumas casas de cada lado, a igreja, a escola, um universo sem dúvida muito familiar, brasileiro, mas num formato à americana –, o filme funciona como uma espécie de catarse política… No começo, para as pessoas de direita, era justamente um filme mais ou menos. Com o sucesso, eles começaram a ir ver e, agora, acontece o debate público. Depois dos críticos de cinema, estão os politizados, os policiais, os sociólogos, alguns psiquiatras, eles comentam.

 

Le Monde: Nos cartazes podemos ler “um filme de resistência”. Por que essa afirmação?

Kleber: Desde que você diz “não” a qualquer coisa, isto se torna política. O filme joga em parte sobre uma divisão social clássica no nosso país: o Norte contra o Sul, Recife contra São Paulo. Isso tem tocado um nervo. Quando começamos a refletir sobre o cenário, com Juliano, em 2009, assistíamos a um festival de cinema. Nele foram projetados dois documentários etnográficos, bem feitos, bem realizados, mas que pareciam suspender o assunto principal sem mostrá-lo. Fizemos dessa pequena vila o personagem principal e mais atraente do nosso filme. Alguns dizem que isso é idealizar, criar fantasmas, mas evidentemente são pessoas do Sul que pensam assim. Uma pequena comunidade, vista como fraca e atrasada, sofre ataque e reage de uma forma que não era esperada: com tudo que está se passando no Brasil, isto se transforma em política.

 

 

Le Monde: Jair Bolsonaro é da região de São Paulo e Lula do Nordeste…

Kleber: Bolsonaro perdeu em todos os nove estados do Nordeste – e uma grande parte do que se atribui a Lula é, no fundo, uma reação clássica para qualquer um do Norte.

 

Le Monde: Vendo o seu filme, não se pode deixar de pensar em Antônio das Mortes (personagem de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, 1969) de Glauber Rocha, e nos cangaceiros, esses bandidos que aparecem em cores, reconhecidos ou populares, que durante mais de um século dominaram o Sertão.

Kleber: É certo que pensamos nos cangaceiros. Essa história faz parte de minha vida. Minha mãe, historiadora, pesquisava os proprietários de terra no Brasil no século 19, o fim da escravatura e a população de libertados que ninguém cuidou. Reina sempre no Brasil um tipo de impressão fantasma da escravatura, sobre o que já falei em meus filmes. Minha mãe morreu em 1995, ela nunca viu nenhum dos meus filmes, mas está presente em todos.

 

Juliano: Podemos dizer que o chefe rebelde é um cangaceiro da quarta geração, à hip-hop. Existe uma aproximação entre os cangaceiros e a gang rap. Eles adoram mostrar riqueza e poder, eles adoram hábitos flashy e cheios de presentes. Mas a verdade é que pensamos menos em ‘cangaceiros’ do que nos centros de detenção para menores, onde há regularmente rebeliões, ou desses jovens que se digladiam, cortam cabeças e as jogam por cima dos muros… Assim aconteceu no fim de julho em Belém. É um assunto do qual falamos bastante.

 

Le Monde: A atualidade recente – a ascensão ao poder de Jair Bolsonaro, a Amazônia em fogo –, isso muda a natureza e a força do filme?

Juliano: A similaridade com a realidade se revelou a posteriori. Por exemplo, no filme, a vila de Bacurau foi um dia retirada do mapa. Estávamos para terminar a mixagem quando descobrimos que o governo tinha, da mesma maneira, tirado a carta de reservas indígenas – isso antes dos incêndios na Amazônia – sobre o mesmo princípio que no filme: já que isso não existe mais, podemos fazer o que quisermos.

 

Kleber: Tudo o que se passa em Bacurau é reflexo de problemas crônicos de nossa sociedade depois da 2ª Guerra Mundial. Mas esse governo está prestes a nos fazer voltar 20 anos do ponto de vista social. Não era nossa intenção, mas o filme apresenta nossa realidade de forma expressiva. Hoje em dia, existem duas maneiras de dirigir um País. A primeira é fazer leis, a segunda é simplesmente criar a atmosfera que vá permitir os acontecimentos do futuro. É o que se passa atualmente no Brasil, notadamente pelo desflorestamento da Amazônia. As pessoas se sentem autorizadas a tomar a terra e incendiá-la.

 

 

Le Monde: Em São Paulo o governo anunciou a realização de um festival de filmes militares… Como vocês reagem?

Kleber: Sim, é isso ou o fim de todos os financiamentos governamentais para as artes. A cada dia, há um truque novo. E tudo chega com um ar de nada, de maneira misteriosa, com um sorriso. É de tal maneira que essas coisas se passam que não sabemos como reagir.

 

Le Monde: Entretanto, vocês reagem. Com esta frase de fim genérico: “A cultura é, ao mesmo tempo, uma identidade e uma indústria. Este filme criou 800 empregos…”

Kleber: Isso se torna uma mensagem, apesar de que é uma simples verdade. Nos multiplex, o filme é aplaudido, mas quando a frase aparece as pessoas aplaudem ainda mais fortemente. Hoje a sociedade brasileira está dramaticamente dividida. Se você diz que acredita em alguma coisa bem básica como a Educação para todos, você é imediatamente apontado como comunista.

 

Le Monde: Vocês são pessimistas quanto ao futuro?

Juliano: Eu tenho sido sempre pessimista quanto à humanidade.

 

Kleber: Uma coisa é ser filosoficamente pessimista, uma outra é tomar conhecimento de que todo mundo é doente em sua volta, uma espécie de depressão generalizada, com o mesmo sintoma físico. Falo pensando num filme de David Cronenberg. Não é como se fosse um truque com o qual você tomba por terra um dia. Não, isso continua mês após mês, após mês… Penso que na falta de respeito – pela sociedade, pelas pessoas, pelas raças – há uma escala industrial e é fonte de destruição. Jamais conheci isso antes. Nós entramos na verdade em terra desconhecida.

 

 

* Celso Marconi, crítico de cinema, é referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8 e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.

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