Conheça quatro livros de poetas brasileiros contemporâneos

A poesia é política. Pode até não tratar disso diretamente, mas é um ato engajado. E política, nos versos, não significa tratar de fatos e desgovernos, mas de ressignificar símbolos. E há muito disso na produção recente contemporânea. Quatro livros chegam às prateleiras com vozes ora diretas, ora abstratas, mas sempre contundentes e carregadas de um certo desencanto.

“É um livro violento”, avisa Eucanaã Ferraz sobre Retratos com erros. E amargo. O erro do título, ele avisa, é uma forma de frustrar de imediato qualquer expectativa de realismo ou reconhecimento. Há, inevitavelmente, falhas no discurso quando se trata da tentativa de construir retratos fiéis. E já que o erro é inevitável, é melhor, segundo o poeta, considerá-lo de partida. E o erro, ele lembra ainda, é o belo.

Em versos como “Os diamantes desanimaram de nós/Adeus civilizações natureza humana”, do poema A mais dura e brilhante, ele fala do desalento diante do mundo contemporâneo. “A humanidade fracassou. Nada chorará nosso extermínio sob a terra. Ao contrário, será um alívio”, acredita Eucanaã.

É um fracasso que também aparece em Previsão para ontem, de Henrique Rodrigues. “O Rio de Janeiro/15 assassinatos/por dia/e 130 saraus/de poesia”, escreve o poeta, que não é panfletário, mas encara a conjuntura. “O livro foi feito para esse momento que estamos vivendo”, garante. “É um livro de guerrilha, levado pelas nossas questões políticas, sociais e estéticas também. Mas também não é só um livro panfletário. É sobre o depois disso, o que a gente precisa, o que é possível fazer, por isso tem uma vertente lírica bem forte”, avisa.

Henrique tem a esperança de ver o diálogo se reerguer num país abatido pela discórdia e pela intolerância. Por isso estrutura Previsão para ontem em três pilares: o da memória, no qual recorre à trajetória da própria família, de origem muito pobre, a política e a afetiva. “A gente precisa do afeto e do próximo”, lembra.

Linguagem

Mais direta e explicitamente ancorada na contemporaneidade, a linguagem de Bruno Brum em Tudo pronto para o fim do mundo tem de tudo: as redes sociais, a forma como as relações se constroem e como, ao mesmo tempo, são destruídas, o consumo, as noções de felicidade e de sucesso e até um poema sinopse dele mesmo. Diablo wings 2.0 se apropria de clichês, da linguagem da internet e da publicidade, uma constante ao longo de todo o livro. “São discursos prontos que a gente consome e reproduz o tempo todo”, repara Bruno.

A própria ideia de fim do mundo é um clichê que assombra a humanidade. Previsões catastróficas existem desde o início dos tempos. O próprio poeta lembra ter crescido com a certeza de que o mundo viria abaixo no ano 2000. Mas há outras formas de o mundo acabar sem que haja um cataclisma visível e dramático.

“Às vezes, a gente não se dá conta de que o mundo vai acabando aos poucos, mas vai sendo reconstruído”, aponta Bruno. E nessa reconstrução eterna, a linguagem poética encontra alimento. “A poesia é uma questão de resistência”, diz. “Talvez não seja das artes mais consumidas, mas atua em algo que é a comunicação verbal, a linguagem que está presente em todas as escalas da atividade humana. É um uso não convencional da linguagem, não referencial, e pode apontar caminhos, desvelar coisas que a gente dá como naturais, corriqueiras.”

Desajuste

“Precisa-se de trolha com experiência/para França./Pintor à pistola em Viana/do Castelo./Ajudante familiar/em regime interno/na zona das estrelas, em Lisboa.” diz o verso inicial de Novas ofertas de emprego para Ederval Fernandes, o poema que dá nome ao livro do próprio Ederval.

Minimalista e imagético, como aponta o crítico Ricardo Domenecek na orelha do livro, o brasileiro radicado em Portugal é também político, à sua maneira. Seus versos são a voz de um brasileiro nascido numa família de classe média baixa, no interior da Bahia, com pais que não terminaram nem o ginásio porque era imperativo trabalhar, sobreviver.

“Tipos como eu não costumam habitar os palanques sociais. E gosto de saber que, de forma até bastante tímida, minha voz consegue sair e ser ouvida além das esquinas de Feira de Santana”, diz. “A voz sai e mostra o que eu sou: o desajuste, aquele que não aceitou ser o que estava arquitetado para mim. Isso é político. Isso é importante.”

ENTREVISTA /  EUCANAÃ FERRAZ

Pode contar um pouco como os poemas surgiram  e as inquietações que os motivaram?

Os poemas do livro surgiram como sempre: de circunstâncias várias, de desejos, de palavras, sons, leituras, situações, impulsos emocionais e estéticos que exigiram a escrita, como se a decisão de escrever fosse racional e, simultaneamente, exterior à razão. Mas, de certo modo, há neste conjunto de poemas um constante desencanto, uma amargura mesmo. É um livro muito violento.

Por que chamar as partes de Dobras?

Dobra sugere aumento, duplicação, intensificação, flexão, vinco, áreas de luz e de sombra. Assim, associada a “dobra”, a palavra “retrato” mostra sua complexidade. O livro é composto por três partes. Cada poema é um retrato; e cada parte forma um retrato; que é uma dobra de um retrato maior: o próprio livro. Cabe observar que o anúncio do erro, já no título — Retratos com erro —, frustra, de imediato, qualquer expectativa de realismo ou de reconhecimento; aponta para a falha do discurso que tente fazer retratos fiéis, pois o erro será inevitável e, portanto, é melhor considerá-lo de partida. A fidelidade está aí, na aceitação da falha. Chamar atenção para o erro equivale a sublinhar aquilo na poesia que é deformação, ou ainda, experimentação, que vai bem além dos traços imediatos a fim de buscar estruturas mais profundas, ou ainda, dobras.

Em A mais dura e brilhante: “Os diamantes desanimaram de nós./Adeus civilizações natureza humana.”Há um certo desencanto no livro?

Sim. É um livro no qual os poemas foram sendo formados sob a sombra de tempos difíceis, dilacerantes, angustiantes. Há desencanto, mágoa, ironia, muita dor, uma espécie de pesadelo. O poema que você cita, A mais dura e brilhante, talvez seja o mais desencantado que já escrevi. A espécie humana aparece ali como um projeto falido, por isso nem vale a pena exibir os avanços, a arte, a solidariedade, a generosidade, tudo o que fizemos de bom. Diante do horror que não cansamos de promover, o bem parece irrelevante.

De que maneira?

Quando a humanidade ainda incorre largamente na xenofobia, no racismo, na intolerância religiosa, promove holocautos, genocídios, usufrui irresponsável e arrogantemente da natureza, coloca em risco a vida humana, parece que somos incapazes de aprender. Só o humano pode perdoar o humano. Mas eu me coloquei no lugar dos diamantes, dei voz a eles, íntegros e perfeitos, duros e puros. Tais juízes jamais nos perdoariam. A humanidade fracassou. Nada chorará nosso extermínio sob a terra. Ao contrário, será um alívio.

Há também um certo clima de fantasia com poemas nos quais cabelos são figuras, membros nascem em partes erradas de um corpo?

A imaginação é uma coisa que sempre me interessou. Creio que, paulatinamente, meus poemas foram se tornando mais e mais imaginativos, compondo imagens inusitadas, perturbadoras, composições que desafiam a lógica, ou ainda, foram buscando cada vez mais aqueles “erros” produzidos pelos sonhos, pelos delírios, pela fantasia desassombrada.

Em Ideal, você diz: “melhores poetas bandidos mortos/ meus futuros companheiros”. Poesia é coisa de bandidagem no Brasil de hoje?

Poderia dizer que a poesia sempre foi coisa da bandidagem. Pelo menos desde Platão, com sua República ideal, da qual os poetas seriam expulsos. A poesia é do âmbito da fantasia, e do erotismo, e da improdutividade, embora nascida do domínio e do trabalho, está do lado da loucura. É impossível domá-la. É impossível mesmo compreendê-la, pois é um desafio à razão, à ordem, à autoridade. Daí, os estados totalitários sempre têm medo dos poetas e dos poemas. Não importam os temas. Um poeta escreve sobre um simples copo, e os ditadores morrem de medo. É compreensível, pois se um poeta escreve sobre um simples copo, aquilo será um signo onde se inscreve a liberdade.

Em Dorothy há um ensaio de prosa? Você gostaria de enveredar pela prosa?

Muitos poemas no livro, e não só neste, estendem os limites do poema, do verso, alcançam algo da prosa sem se confundir com ela. Mas não tenho nenhuma vontade de “enveredar pela prosa”, como você diz. Sou poeta. Amo o verso. Sou do verso. É a minha casa. É meu modo de errar.


Tudo pronto para o fim do mundo
De Bruno Brum. Editora 34, 76 páginas. R$ 36

Novas ofertas de emprego para Ederval Fernandes
De Ederval Fernandes. ParaLeLo 135, 64 páginas. R$ 35

Previsão para ontem
De Henrique Rodrigues. Cousa, 74 páginas. R$ 30

Retratos com erro
De Eucanaã Ferraz. Companhia das Letras, 120 páginas. R$ 54,90

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