
Ana Maria Gonçalves, celebrada pelo romance “Um Defeito de Cor” (2006), vai substituir o filólogo Evanildo Bechara, que morreu em 22 de maio.
A escritora mineira Ana Maria Gonçalves foi eleita nesta quinta-feira (10) para ocupar a cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Celebrada pelo romance Um Defeito de Cor (2006), ela era favorita à vaga e recebeu 30 votos de 31 possíveis – a escritora indígena Eliane Potiguara teve um voto.
Ana Maria vai substituir o filólogo Evanildo Bechara, que morreu em 22 de maio. Nos 128 anos de história da ABL, esta é apenas a primeira vez que uma autora negra se torna “imortal”. Além disso, entre as 13 escritoras mulheres já eleitas acadêmicas, nenhuma havia conquistado uma cadeira com menos de 55 anos – a idade atual de Ana Maria.
“Ali (a ABL) é um clube, e as construções de quem entra e quem não entra são discutidas internamente. Enquanto a gente não tiver vozes dissidentes lá dentro, que defendam e conversem com outras candidaturas, a gente realmente não vai estar lá”, afirmou a escritora há pouco mais de um mês, em entrevista à Folha de S.Paulo.
Historicamente racista e machista, a Academia só passou a ter uma integrante do sexo feminino em 1977, quando, já octogenária, acolheu a cearense Rachel de Queiroz. Sua primeira presidenta mulher, Nélida Piñon, alcançou o posto somente em 1996, às vésperas do centenário da entidade.
Ao completar cem anos, em 1997, a Academia mereceu do jornalista e crítico José Geraldo Couto uma síntese afiada: “Pouca gente séria leva a sério a Academia Brasileira de Letras, mas ela é a cara do Brasil. Os defeitos crônicos da entidade – a política de compadrio, a retórica oca, o formalismo, a subserviência aos poderosos, o conservadorismo político e de costumes – são os mesmos que caracterizam a história do país”.
Polêmicas
Independentemente de época, a polêmica é regra na Casa de Machado de Assis. Para qualquer mortal, “é mais fácil se eleger presidente do Brasil do que vencer uma eleição na ABL”, teria dito o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Para mulheres e negros, o desafio sempre foi maior.
Idealizada e fundada em 1897 por um escritor negro, Machado de Assis, a instituição tem um histórico de desprezo à diversidade. O próprio Machado, seu primeiro presidente, foi alvo do racismo velado. Por mais de um século, o autor de Dom Casmurro era reconhecido, no limite, como “mulato”, jamais como negro. Seu embranquecimento simbólico refletia o caráter elitista que prevaleceu (e ainda prevalece) na Academia.
Em 1917, quando o “imortal” Sousa Bandeira morreu, a ABL recebeu uma carta de Lima Barreto, hoje reconhecido como maior escritor negro do Brasil no século 20. O autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma seguiu todos os trâmites para registrar sua candidatura a “imortal”, mas foi esnobado pelo presidente da Academia, Rui Barbosa, que nem sequer lhe respondeu. Barreto escreve, então, uma libelo contra a entidade: “Começou com escritores, tendo estes, por patronos, também escritores; e vai morrendo suavemente em cenáculo de diplomatas chics, de potentados do ‘silêncio é ouro’, de médicos afreguesados e juízes tout à fait”.
A ABL foi transgressora, sim, no rumo da desmoralização. Sob o Estado Novo, aceitou o ingresso imotivado (a não ser por razões políticas) do presidente Getúlio Vargas. Foi uma das poucas indicações que não passaram pelo voto dos acadêmicos. Em plena ditadura, tamanho capachismo foi duramente criticado num manifesto assinado por nomes como Sérgio Buarque de Hollanda e Carlos Drummond de Andrade.
As incoerências não terminaram por aí. Os magnatas da mídia Assis Chateaubriand e Roberto Marinho também viraram “imortais”, assim como o sanitarista Oswaldo Cruz, o inventor Santos Dumont, o cirurgião plástico Ivo Pitanguy e o neurocirurgião Paulo Niemeyer Filho. Ganha uma vaga automática na ABL quem identificar qualquer contribuição relevante de qualquer um deles como acadêmico a serviço da língua portuguesa e das letras.
José Sarney chegou primeiro à ABL (em 1980) e só depois ao Planalto (em 1985). Mas, eleito “imortal” enquanto comandava o PDS (herdeiro do partido da ditadura, a Arena), ele transformou sua posse num evento político pró-regime. Estavam presentes o general-ditador João Batista Figueiredo, o vice-presidente Aureliano Chaves e nove ministros.
De Conceição Evaristo a Ana Maria
A preocupação com a ausência de autoras negras é recente. Em 2018, Conceição Evaristo, mineira e preta, entrou na disputa pela cadeira 7, vaga desde a morte do “imortal” Nelson Pereira dos Santos. A jornalista Flávia Oliveira puxou o coro. “Voto em Nei Lopes ou Martinho da Vila. Sem falar na Conceição Evaristo. ‘Tá’ faltando preto na Casa de Machado de Assis”.
Com direito à hashtag #ConceicaoEvaristonaABL, abaixo-assinados online em apoio à sua “anticandidatura” reuniram mais de 40 mil signatários. Mesmo sem conquistar a vaga – que ficou com o cineasta Cacá Diegues –, Evaristo firmou o debate sobre a falta de representatividade numa das mais antigas e tradicionais instituições culturais do Brasil.
Em fevereiro de 2024, a Academia Mineira de Letras fez jus à causa e transformou Conceição Evaristo em sua primeira “imortal” negra. “Fiquei feliz, mas com a sensação de que a Academia estava cumprindo um papel de justiça”, enfatizou a autora.
No mesmo mês, a candidatura de Ana Maria Gonçalves à ABL passou a ser mencionada devido à combinação de boas notícias. A primeira delas, ainda no Carnaval 2024, foi a repercussão do samba-enredo da Portela inspirado em Um Defeito de Cor. Após o desfile da escola na Marquês de Sapucaí, a procura pelo livro cresceu dez vezes, levou a editora a fazer uma reimpressão às pressas e fez de Ana Maria a campeã de vendas na Amazon. Com mais de 900 páginas, o romance histórico já vendeu 180 mil exemplares e se converteu num inusitado best-seller.
A protagonista de Um Defeito de Cor é Kehinde, alter ego da revolucionária Luísa Mahin. Já idosa e cega, a ex-escrava viaja da África para o Brasil, a fim de procurar o filho do qual está separada há décadas. Temendo morrer antes que o navio atraque no Rio de Janeiro, ela relata suas memórias a uma companheira de viagem. As lembranças incluem traumas da diáspora, anos de escravidão, insurreições e religiosidade. É o relato de vida de uma negra africana escravizada, alforriada e perseguida no Brasil no século 19.
Em maio de 2025, Um Defeito de Cor foi eleito o melhor livro brasileiro de literatura do século 21, conforme um júri de personalidades e especialistas ouvidos pela Folha. Rankings do gênero são invariavelmente controversos, mas os números são contundentes: entre 101 votantes – que podiam escolher até dez livros –, 48 citaram a obra-prima de Ana Maria Gonçalves. Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, ficou num distante segundo lugar, com 35 votos.
“Através da jornada épica de Kehinde, Ana Maria Gonçalves não apenas reconstrói o Brasil do século 19 – ela o reinventa, preenchendo as lacunas da história oficial com uma narrativa tão meticulosamente pesquisada quanto poeticamente construída. É daqueles livros que nos fazem diferentes após a última página”, justificou-se o músico e escritor angolano Kalaf Epalanga. “É uma síntese e uma antecipação de temas que se tornariam centrais nas quase duas décadas que se seguiram a seu lançamento”, agregou o crítico Italo Moriconi.
Futuro
O Brasil mudou – e o triunfo de Ana Maria Gonçalves expressa que, se o tempo passou na janela, a ABL já viu. Não que, neste último período, a politicagem entre acadêmicos tenha diminuído. Quem conta entre seus 40 membros com dois jornalistas-celebridades da Globo, Merval Pereira e Miriam Leitão, não pode reivindicar a condição de isenta.
No entanto, a Academia tenta se popularizar. Em 2022, elegeu como “imortais” a atriz Fernanda Montenegro e o cantor e compositor Gilberto Gil. Já o escritor e ativista Ailton Krenak, empossado na ABL em 2024, foi seu primeiro integrante indígena. “Eu não sou mais do que um, mas eu posso invocar mais do que 300. Nesse caso, 305 povos (indígenas), que nos últimos 30 anos passaram a ter disposição de dizer: ‘Estou aqui’”, afirmou Krenak.
Agora, passados 128 nos da fundação da ABL, uma autora afro-brasileira chegou lá. “Que se abra uma linhagem de mulheres negras, que é muito importante para a Academia, para que ela seja diversa, plural”, disse a “imortal” Lilia Schwarcz, biógrafa de Lima Barreto. “É muito fundamental este lugar que ela vem ocupar e todo o mérito que é dela – e toda a luta que é dela. Vem representando as mulheres negras e um feminismo muito importante.”
A senda está aberta. Neste ano, a Fuvest, responsável pelo vestibular para a USP (Universidade de São Paulo), terá apenas livros escritos por mulheres como leituras obrigatórias. Ao todo, são dez autoras: Clarice Lispector, Conceição Evaristo, Djaimilia Pereira de Almeida, Julia Lopes de Almeida, Lygia Fagundes Telles, Narcisa Amália, Nísia Floresta, Paulina Chiziane, Rachel de Queiroz e Sophia de Mello Breyner Andresen. É tempo de enfrentar os cânones.
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