
Em entrevista a Chico Pinheiro, poeta e vereadora comunista fala sobre literatura, feminismo, fé e o papel da esperança na reconstrução do Brasil
“O esperançamento, essa coisa de Paulo Freire, de você reconstruir mundos, isso é poético. Então, você pode, na política, ser braço para reconstruir mundos. Isso também é poético”, afirmou Cida Pedrosa, poeta, advogada e vereadora do PCdoB no Recife (PE), durante uma entrevista com o jornalista Chico Pinheiro para o canal do ICL (Instituto Conhecimento Liberta) no YouTube.
O bate-papo revelou uma artista que transformou a palavra em instrumento de luta. Com mais de quatro décadas dedicadas à militância e aos direitos humanos, Cida recordou o início da trajetória como advogada da Diocese de Palmares, no agreste pernambucano, quando a democracia ainda não havia chegado por completo.
“Os sindicatos estavam na mão da usina do Pelego. Nós tínhamos a maior dificuldade de realizar a política sindical, eram mortos muitos trabalhadores, mataram meu companheiro, atentaram contra a minha vida, eu perdi um bebê de sete meses, então eu fui parar no lugar onde o processo democrático ainda não havia sequer chegado”, disse ao relembrar o período em que a defesa dos trabalhadores rurais se confundia com a resistência à opressão.
Comunismo e fé caminham juntos
Nordestina de Bodocó, filha de mãe cabocla e pai português, Cida contou que descobriu a fé e o comunismo ao mesmo tempo, sob influência de um padre progressista. “Eu lembro de uma palestra que ele deu pra mim: ‘e se você chegar no céu e Deus for preto?’. Com essas indagações ele fazia você começar a pensar ‘que lugar é o lugar da mulher, que lugar é o lugar dos pretos e pretas’. Essa igreja me mostrou a desigualdade social, e ao mostrar a desigualde social eu digo: mas o que é que se pode confrontar isso do ponto de vista político? Aí eu comecei a ler sobre a literatura mais marxista, socialista. O mundo cristão pensado nas regras de Cristo é muito próximo da misericórdia, da compaixão. Isso está muito próximo de pensar um mundo socialista”, afirmou.
Crítica à ala conservadora da Igreja Católica, a vereadora defende a espiritualidade popular como expressão do bem-viver. “Deus está onde a fé está. Está na Umbanda, nas comunidades, no abraço a uma mulher trans agredida. Eu sou católica de sacristia com o pé no terreiro, porque todo brasileiro tem um pé no terreiro, mesmo que negue isso”, destacou.

Literatura e o poder da palavra feminina
Autora de obras como Solo para Vialejo — vencedora do Prêmio Jabuti 2020 —, Araras Vermelhas, vencedor do prêmio APCA, Claranã e As Filhas de Lilith, Cida reafirmou a literatura como espaço de poder e libertação. “Se você quer ser escritor, não pode ter medo da palavra. Todas as palavras cabem no poema, das mais chulas às mais refinadas. Porque tudo depende se é literatura ou não é literatura”, declarou.
Defensora da escrita feminina, destacou a presença crescente das mulheres na literatura brasileira. “Nós tínhamos apenas 2% de mulheres editadas em 1980. Hoje somos 32%. É pouco, mas é a grande novidade. (…) A mulher escreve cuidando dos filhos, da casa. Quem fica com os filhos enquanto a gente escreve?”, questionou.
A luta nas ruas e a esperança no Brasil
Eleita duas vezes vereadora em Recife, Cida atua pela defesa das mulheres, da moradia e dos direitos humanos. É autora do “Protocolo Violeta”, primeira lei do país que obriga bares e estabelecimentos comerciais a proteger mulheres vítimas de violência. “Eu acompanho comunidades em ocupações, faço a luta pela moradia, pela drenagem, pelo saneamento. Tudo que você consegue de política pública ajuda a evitar despejos”, explica.
Mesmo diante da ascensão da extrema direita, mantém a esperança. “Acho sinceramente que o golpe do 8 de janeiro, o golpe contra Dilma, e a organização da extrema-direita, que é muito maior do que o Bolsonaro, mostraram o tamanho do desafio que temos. Essa corja que se levantou do chão, ela já existia, porque ela era aquele tiozão nosso do almoço de domingo, que dizia uma pilha e a gente pensava, “não, é só meu tio ali”, mas, na verdade, essas pessoas são chauvinistas, machistas… essas pessoas namoram com o fascismo, sonham com o dia da supremacia branca dos homens. A elite brasileira, ela é muito complicada. Está o tempo inteiro pensando única e exclusivamente no bingo dela. (…) O Brasil está precisando de esperança”.

Sobre o momento político, Cida expressou esperança com a retomada de políticas sociais e com o reposicionamento internacional do Brasil. “Quando você vê, por exemplo, a resposta que o governo Lula dá para várias questões… quando ele trata o Brasil como um país soberano e entrega políticas sociais importantes para o povo brasileiro, isso me dá esperança. O BRICS me dá esperança. A construção de um mundo para além do imperialismo americano me dá esperança.”
E ao falar do Nordeste, concluiu: “Faz um tempo que a gente não quer apresentar o Nordeste como lugar que tem a caveira do boi, só a pobreza. A gente apresenta um outro Nordeste, que produz manga e vinhos, que tem uma cultura linda, uma cena musical incrível, e que acaba de ganhar dois prêmios no cinema. (…) Claro que as desigualdades ainda são muito grandes, mas o Nordeste me dá esperança.”
Da infância sertaneja à voz do povo
Ao recordar as origens no sertão pernambucano, Cida emocionou-se ao falar da alfabetização e da superação da dislexia. “Eu aprendi que só estava alfabetizada se conseguisse ler uma sextilha, com ritmo e métrica. Escrever foi a minha salvação, porque ao escrever eu me entrego à palavra.”
A poeta também lembrou com humor e ternura da infância simples. “Não tínhamos energia elétrica nem banheiro, mas tínhamos o hábito da leitura. Meu pai lia faroeste, minha mãe romances de bolso. O livro, mesmo simples, nunca foi estranho à nossa casa.”
Cida conclui a entrevista reafirmando a importância da mobilização popular e da palavra como instrumento de transformação. “A extrema-direita está se organizando nas ruas. Nós precisamos ir pra rua dizer não à anistia. É hora de juntar a gente de novo”, defende. Para ela, a liberdade começa pela leitura e pela consciência. “Enquanto houver um homem ou uma mulher que não saiba ler, não seremos um país livre.”
Sua trajetória, que nasce no sertão e se projeta na literatura e na política, reafirma a força de uma voz que escreve e luta com a mesma convicção: a de que poesia também é revolução.
Confira abaixo a íntegra da entrevista que foi ao ar nesta segunda-feira (6), no canal do Instituto Conhecimento Liberta (ICL), no YouTube.
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