Artigo de Opinião: O Estado Brasileiro como Sucessão de Golpes

De Marechal Deodoro a Sérgio Moro: uma história marcada por rupturas institucionais, golpes disfarçados e democracia sob ameaça.

Por Cláudio Ribeiro

O Estado brasileiro, desde sua fundação como república, tem sido marcado por uma constante descontinuidade institucional. Muito mais do que avanços graduais ou amadurecimento democrático, a trajetória da política brasileira é pontuada por interrupções, rupturas e recomeços forçados. Uma sucessão de golpes — ora militares, ora civis, ora judiciais — molda o Brasil até os dias atuais.

A República que não pediu licença

A proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, é o ponto inaugural dessa trajetória. Foi um golpe militar conduzido por marechais descontentes e respaldado por setores urbanos e cafeicultores1. Dom Pedro II foi deposto sem consulta popular, e a República foi proclamada sem plebiscito. A Constituição republicana só veio em 1891, gestada por elites com pouco apreço pela participação democrática2.

O “golpe modernizador” de Vargas

Em 1930, a eleição do paulista Júlio Prestes é anulada por um levante armado liderado por Getúlio Vargas, com apoio de setores militares e oligarquias dissidentes3. O golpe de 1930 é chamado por seus protagonistas de “Revolução”, mas derrubou um governo legalmente eleito e encerrou a chamada República Velha.

Não bastasse isso, em 1937 Vargas institui o Estado Novo com outro golpe, agora ditatorial. Inspirado nos modelos autoritários europeus, decreta uma nova Constituição, fecha o Congresso, impõe censura e elimina a alternância no poder4.

1964: O golpe que virou regime

O golpe de 1964 é, talvez, o mais emblemático. Militares, com apoio explícito de setores empresariais, conservadores civis e dos Estados Unidos (documentado na Operação Brother Sam)5, derrubam o presidente João Goulart sob a alegação de combater o comunismo. Instauram uma ditadura militar que duraria 21 anos, marcada por censura, cassações, tortura e assassinatos de opositores6.

Impeachments: Legalidade ou manobra?

A redemocratização de 1985, após o movimento das Diretas Já, também teve contornos pouco ortodoxos. Tancredo Neves, eleito indiretamente pelo colégio eleitoral, morre antes de tomar posse. Assume José Sarney, ex-presidente da ARENA, partido de sustentação da ditadura — uma ironia política monumental7.

Em 1992, o impeachment de Fernando Collor teve forte base jurídica e apoio popular, sendo considerado um caso de ruptura democrática dentro das regras8. Já o de Dilma Rousseff, em 2016, é muito mais controverso. Baseado em alegações frágeis de “pedaladas fiscais”, o processo teve apoio de partidos derrotados nas urnas, setores empresariais e da mídia9.

Lava Jato e lawfare: o novo modelo de golpe

A Operação Lava Jato inaugurou uma nova forma de golpe: o lawfare — uso político do sistema de Justiça. A prisão de Lula em 2018, quando era líder nas pesquisas eleitorais, inviabilizou sua candidatura e abriu caminho para a eleição de Jair Bolsonaro. O juiz da causa, Sérgio Moro, foi posteriormente recompensado com o cargo de Ministro da Justiça, evidenciando possível desvio de finalidade10.

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a parcialidade de Moro e anulou as condenações contra Lula11. Mas o dano institucional já estava consolidado.


Conclusão: um ciclo ainda aberto

O que esses episódios revelam é um padrão estrutural. O Estado brasileiro não evolui de forma contínua: ele é interrompido, redesenhado e manipulado conforme os interesses do momento. As “regras do jogo” mudam de acordo com o placar, e a democracia, por vezes, é apenas um adereço retórico.

O desafio é romper com esse ciclo. Estabilizar instituições, fortalecer o voto, garantir independência do Judiciário e criar uma cultura de respeito às regras, mesmo quando desfavoráveis. Sem isso, o Brasil continuará sendo um país de golpes — apenas com disfarces cada vez mais sofisticados.


Notas de rodapé e fontes


  1. CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

  2. SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

  3. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EdUSP, 2013.

  4. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

  5. GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

  6. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984.

  7. LAMOUNIER, Bolívar. “Redemocratização e sistema partidário.” In: O Brasil e a nova ordem mundial. São Paulo: Contexto, 1994.

  8. AVELAR, Lucia. Impeachment e Democracia no Brasil. São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2002.

  9. MIGUEL, Luis Felipe. O colapso do arranjo político de 1988. São Paulo: Boitempo, 2018.

  10. GREENWALD, Glenn. Intercept Brasil – Vaza Jato. Disponível em: https://theintercept.com/brasil

  11. Supremo Tribunal Federal. HC 164.493/PR. Rel. Min. Edson Fachin. Julgado em 08/03/2021.

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