A subversão da Páscoa

 

A subversão da Páscoa
Enquanto ciência e religião não chegam a um acordo sobre os fatos que cercam os últimos dias de Jesus Cristo, a Páscoa é comemorada cada vez mais com símbolos que pouco têm a ver com sua origem

Difícil acreditar, mas durante centenas de anos a principal comemoração dos que seguiam os ensinamentos de Jesus Cristo era a Páscoa, e não o Natal. Até o século 4, por sinal, os cristãos pouco se importavam com a data de nascimento do seu messias. Era a sua morte e sua ressurreição que contavam, conforme atestam as pesquisas históricas. O Natal tomou seu lugar como celebração maior do cristianismo, mas não eliminou a importância de uma festa que congrega milhões de fiéis no mundo inteiro. Ainda que repleta de hábitos pouco ligados à religião, como a distribuição de ovos feitos de chocolate ­ guloseima que nem existia no tempo e no lugar em que Jesus viveu.

 

No quadro do pintor
alemão Hans Multscher
(século 15), Cristo
ressuscita, levantando-se
de seu túmulo

Para os cristãos, a Páscoa representa uma dramática seqüência de fatos que definiu o começo de uma nova crença, a dos seguidores de Jesus Cristo. Mas, ironicamente, sua origem confunde-se com os costumes da religião que eles mesmos abandonaram, ou seja, o judaísmo.

Isso por coincidência de datas: a Paixão de Cristo ocorreu durante o Pessach, um dos mais importantes feriados religiosos hebraicos. A palavra significa “passagem” e se refere à libertação do cativeiro no Egito. O Velho Testamento conta que, uma vez livres do domínio dos faraós, os judeus seguiram sua jornada pelo deserto, guiados por Moisés, rumo a Israel. Na fuga, a pressa não deixou que eles fermentassem o pão: por isso a matsá, espécie de pão ázimo (sem levedo), tornou-se componente essencial no cardápio do Pessach.

A celebração do Pessach dura oito dias e começa no entardecer do décimo quarto dia do mês de Nizan, no calendário hebraico. Este ano vai cair em 24 de abril. Durante essa semana, os judeus seguem uma série de tradições, como relembrar a história da escravização de seu povo e abrir mão de alimentos fermentados, como a matsá.

Era essa mesma matsá que Jesus e seus apóstolos provavelmente comiam quando ele foi aprisionado pelos guardas romanos, numa suposta noite de primavera do ano 33 d.C. Isso porque Jesus nasceu e viveu em território hebreu ­ e cultivava os costumes de seu povo. A última refeição, imortalizada na narrativa dos evangelhos como a Santa Ceia, seria o jantar de celebração do Pessach, concordam teólogos e cientistas.

 


Onde está Getsêmani?
Segundo a Bíblia, Jesus
foi preso num lugar de
nome Getsêmani (quadro
de Hans Multscher). A
arqueologia não detectou
o ponto exato, mas os
cristãos rezam onde a
tradição determinou que
o fato teria ocorrido
(fotos acima).

Mas as certezas param por aí. História e Arqueologia nem sempre caminham de mãos dadas quando deparadas com a versão religiosa dos fatos. Boa parte do que é aceito sem reservas pela Igreja Católica sobre os últimos dias de Cristo é discutível para a ciência.

O estudo arqueológico da vida de Jesus é um verdadeiro campo minado, tanto sob a ótica da religião quanto da ciência. “Questionar a verdade religiosa com argumentos da História é tão improdutivo quanto impedir o trabalho da História com argumentos religiosos”, opina Luís Mauro Sá Martino, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) e professor da Universidade São Judas Tadeu, ambas em São Paulo. “São caminhos separados, atividades separadas, finalidades diferentes.”

Detectar os traços da existência de um homem pobre e simples, como teria sido Jesus, é um enorme desafio. Afinal, os registros históricos daqueles tempos cabiam apenas à elite. Ainda assim, a tradição e a fé cristãs movem milhões de fiéis em todo o mundo. Anualmente, boa parte deles lota a cidade de Jerusalém, em Israel, para excursionar pelos locais e reviver os eventos que marcaram os últimos dias de Jesus Cristo ­ e que se encontram no cerne da origem da Páscoa.

A celebração da Semana Santa começa com o Domingo de Ramos, a uma semana da Páscoa. Conta a Bíblia que, nesse dia, às portas de Jerusalém, dois apóstolos trouxeram um jumento para que Jesus pudesse ir ao Templo de Jerusalém. Os populares que se encontravam no caminho foram forrando a estrada com suas vestes e com ramos de oliveira, como conviria à passagem do Messias. Segundo Antonio Carlos Coelho, professor de judaísmo e diretor do Instituto Ciência e Fé, em Curitiba, a recepção com os ramos tinha dupla simbologia: também era o fim da Festa das Cabanas em Jerusalém, tradição judaica que celebrava a última colheita antes do inverno.

A Páscoa já foi a data mais importante do cristianismo.
Até o século 4, o Natal era praticamente ignorado

Depois de alguns dias pregando e realizando milagres, Jesus foi preso. Na noite do Pessach, logo após celebrar a data com a Última Ceia, ele foi capturado no Monte das Oliveiras, em um lugar chamado Getsêmani, e entregue às legiões romanas por seu discípulo Judas Iscariotes. Arqueólogos não puderam determinar o exato ponto do monte onde o fato teria ocorrido, já que a pista da denominação local não ajuda: getsemani significa “prensa de óleo” em hebreu.

Poderia ser virtualmente qualquer ponto da região, coberta de oliveiras. Mas, hoje, turistas e fiéis que aportam em Jerusalém são levados à Igreja de Getsêmani com a promessa de que aquele é, com exatidão, o lugar onde Cristo viveu seus últimos minutos antes de ser preso.

 

A Santa Ceia nada mais era
do que a celebração da
Pessach judaica

A precisão do local onde ocorreu a condenação por Pôncio Pilatos tampouco é comprovada. O governador da Judéia, aliás, é a única figura presente na história da Paixão cuja existência foi atestada por achados arqueológicos: uma placa com seu nome e seu título (praefectus) foi encontrada em 1961 por arqueólogos italianos em Cesaréia. “Mas a placa apenas confirma que houve um Pôncio Pilatos, sem o relacionar a nada do que diz a Bíblia”, avisa Francisco Marshall, historiador, arqueólogo e coordenador do Núcleo de História Antiga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Atualmente, os fiéis convergem à Fortaleza Antônia, mas há outras duas possibilidades apontadas pelos especialistas: a de que Jesus tenha sido julgado num palácio construído para servir de lar às autoridades da Judéia ou no Palácio de Herodes.

De todos os personagens da Paixão de Cristo, a arqueologia
só comprovou a existência de um: Pôncio Pilatos

O reconhecimento de qualquer um desses locais, no entanto, acarretaria uma grande mudança na rota hoje aceita como a Via Crucis ­ percurso feito por Jesus até sua morte na cruz.

 

A Santa Ceia nada mais era
do que a celebração da
Pessach judaica

A crucificação ­ lembrada pelos cristãos na Sexta-feira Santa ­ é outro ponto de contradição entre a história religiosa e a reconstituição científica dos costumes da Judéia daqueles tempos. Os condenados carregavam apenas o travessão da cruz, não a peça inteira. Muitos não eram pregados, mas sim amarrados à cruz ­ e, quando pregados, o eram pelos punhos e não pela palma das mãos. Tais costumes poderiam mudar por completo a imagem de Jesus que vemos em todos os altares de hoje.

A ressurreição de Cristo, celebrada precisamente no Domingo de Páscoa, é narrada de formas bem diferentes dentro dos próprios evangelhos. “ONovo Testamento é um documento da história cultural do período compreendido entrea época de Augusto e a década de 90 d.C., quando se concluiu a redação dos evangelhos”, ressalta o professor Marshall. Nesses casos, em que a memória é registrada textualmente após sua construção oral, muitos detalhes podem se perder ­ e interpretações diversas podem aflorar.

O professor e teólogo Paulo Roberto Garcia, doutor em Ciências da Religião, afirma que essas diferenças podem ser causadas pela dificuldade em se aceitar que o corpo de alguém tão significativo tenha sido sepultado sem o devido respeito. “No Evangelho Segundo Marcos, ele é colocado em um sepulcro sem honra nenhuma. Em Mateus e Lucas, há uma preocupação posterior com os ritos de honra fúnebres”, comenta ele. “Já em João, o corpo de Jesus é enterrado com ritos apropriados ­ inclusive com algum exagero na quantidade de produtos usados para ungir o corpo”, diz.

Ainda que permaneça a névoa que ronda a história dos últimos passos de Cristo, a força da tradição e da fé mantém viva a celebração de sua morte e sua ressurreição desde os mais remotos tempos. Apesar de todo o ruído criado em torno da figura de Jesus, a comemoração pascal não deve ser esquecida tão cedo. Mesmo com todo aquele chocolate desviando a atenção de seu significado original.

Por: Clarissa Passos-Garcia

Compartilhar: