A Arte de Chorar Cantando – Ademilde Fonseca

Baixinha, simpática e com uma voz que, apesar dos 83 anos, ainda encanta os ouvidos mais sensíveis. Essa é Ademilde Fonseca, cantora potiguar que inscreveu seu nome na história da MPB graças ao êxito obtido pelas gravações de Tico-tico no fubá, Apanhei-te, cavaquinho e Urubu malandro, entre inúmeros outros achados da década de 40. Almejando difundir o talento musical nordestino Brasil afora, sua trajetória não foi muito diferente da de seus conterrâneos. Ainda cedo rumou para o Rio de Janeiro, cidade que, na época, dando abrigo às mais prestigiadas rádios do país, polarizava todas as esperanças de sucesso.

O choro, no entanto, gênero que projetou sua carreira de maneira bastante peculiar, entrou antes em sua vida: aos sete anos de idade, quando aprendeu, para se exibir numa festa da escola, a quase desconhecida letra de Tico-tico no fubá —choro composto em 1917 por Zequinha de Abreu e letra escrita por Eurico Barreiros, após a morte do compositor.

“São grandes coincidências. O primeiro estilo de música que aprendi a cantar foi o que acabou me projetando e marcando para o resto da vida”, diz.

Aos 19 anos, casou-se em Natal com o violonista Naldimar Gedeão Delfim, com quem viria a formar um grupo mambembe de teatro e música. “Não sei se me apaixonei por ele ou pelo violão. Acho que foi pelos dois”, confessa Ademilde, que a partir daí assumiu em definitivo sua adoração pela música e, em especial, pelo chorinho.

A fim de fugir das escassas possibilidades de trabalho existentes na região, a família aportou na capital em 1940. Mesmo após o nascimento de sua filha, Ademilde sabia que, se recebesse o devido apoio familiar, poderia conciliar as responsabilidades maternas com os interesses artísticos. Assim, não perdeu tempo e tratou de fazer uma visita à Rádio Clube do Brasil, na qual foi apresentada a Gastão do Rêgo Monteiro, locutor-chefe da emissora. Este, por sua vez, promoveu um encontro entre ela e o instrumentista Benedito Lacerda, encontro do qual nasceu uma grande afinidade. “Sabendo que eu conhecia a letra de Tico-tico no fubá, ele ficou muito entusiasmado e me apresentou ao Braguinha”, conta Ademilde, que já estava trabalhando na Rádio Clube e, muito embora não fosse contratada, cantava acompanhada pelo regional do flautista. Incentivada por esses mestres, a cantora foi aos estúdios da gravadora Columbia, na época dirigida por João de Barro (o Braguinha), em agosto de 1942 e fez a sua primeira gravação: Tico-tico no Fubá. O 78 rotações que marcaria sua estréia tinha no outro lado o samba Voltei pro morro, de Benedito Lacerda e Darci de Oliveira. O sucesso da gravação fez com que Ademilde fosse contratada pela Rádio Tupi, na qual permaneceu por 11 anos. Neste mesmo ano grava dois sambas de Humberto Teixeira — Racionamento, com Caio Lemos e Altiva América com Esdras Falcão. Em 1943 gravou Apanhei-te cavaquinho, de Ernesto Nazareth e letra de Darci de Oliveira e Benedito Lacerda, e Urubu malandro, versos com que Braguinha presenteou-a sobre música de domínio público com arranjos de Lourival de Carvalho. Assinou contrato com a gravadora Continental e passou a ser conhecida como a Rainha do Choro. Quando em 1945 gravou a polca Rato, rato, de Claudino da Costa e Casimiro Rocha, acompanhada pelo conjunto Bossa Clube e o violonista Garoto, em ritmo de choro, sua interpretação consagrou-a como a maior intérprete do choro cantado.

“Cantar choro não é tarefa muito fácil, pois o ritmo alcança tecituras musicais muito altas e muito baixas, porém a minha voz comporta essas variações.” E acrescenta: “O choro cantado aumentou bastante a divulgação deste estilo, porém não creio que tenha sido fundamental para a preservação do ritmo, em meio à avalanche de estilos estrangeiros. Todo aprendiz de violão, cavaquinho ou pandeiro participa de rodas de choro, pois este é o ritmo genuinamente brasileiro. Não existe nada mais carioca que um chorinho.”

O choro Sonoroso, de Del Loro e K-Ximbinho, um de seus maiores sucessos, foi gravado em 1946 junto com o samba Estava quase adormecendo, de João de Deus e Sebastião Figueiredo. Em 1950 alcança novamente enorme sucesso com a gravação de Brasileirinho, de Waldir Azevedo e Pereira da Costa, e Teco-teco, de Pereira da Costa e Milton. Assina contrato com a Todamérica, aonde estréia com os choros Molengo, de Severino Araújo e Aldo Cabral, e Derrubando violões,de Carioca.

Em 1951, pela primeira vez grava baião: Delicado, de Waldir Azevedo e Miguel Lima (considerada uma de suas mais marcantes interpretações) e Arrasta-pé, de Rafael de Carvalho. Um convite da Rádio Nacional, cujo poder de alcance é hoje comparado ao das grandes redes de TV, veio em 1954. Ademilde integrou o elenco da emissora por 18 anos, tendo, nas suas próprias palavras, “finalizado muito bem” a carreira. Ali atuou com os regionais de Canhoto, Jacó do Bandolim e Pixinguinha, além das orquestras de Radamés Gnattalli e do maestro Chiquinho. Dentre as muitas exibições ela rememora com carinho a viagem que fez a Paris, em 1952, para tocar no Baile do Castelo Coberville. “O Chateaubriand levou toda Orquestra Tabajara com Elizete, Jamelão, e fizemos um show para alguns artistas internacionais. Foi uma festa linda, toda enfeitada de palmeiras e frutas. Conhecemos tanto artistas franceses quanto americanos”, e considera verdadeiramente memorável a temporada que passou em Portugal, onde gozava de um relativo sucesso e ficou dois meses numa casa chamada Samba. “Fui eu e Francisco Egídio, de São Paulo. Além disso, me apresentei num festival internacional na Ilha da Madeira, para o qual vieram uma série de artistas de todo mundo”, relembra a cantora, que permaneceu por um ano e meio na terra do fado.

Mas, a despeito das viagens que fez para o exterior e de toda fama e dinheiro que gozou durante o tempo em que se consagrou como a Rainha do choro, Ademilde se mostra um pouco ressentida quando se fala em memória cultural brasileira: “Com o currículo que eu tenho, até poderia estar bem. Mas eu não tenho do que me queixar, a não ser da inversão de valores. Muita gente fica triste porque o Brasil não se preocupa com o que foi feito no país. Nós, artistas, vamos trabalhando na medida em que as pessoas se lembram da gente.”

Hoje, continua na ativa com uma série de projetos em diversas salas do Rio de Janeiro, em eventos que buscam resgatar o rebuliço musical que se deu em meados do século XX. Em dezembro, participou, no teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, do projeto Meio dia e Meia, que, a preços simbólicos, abriu espaço para que muitos desses músicos compulsoriamente aposentados voltassem aos palcos. Em abril, juntou-se à Glorinha Gadelha no projeto Serenata para Natal, no Palácio da Cultura, Rio Grande do Norte.

“Nós temos que agradecer à terceira idade, que enche os teatros, prestigia nossa música, relembra e tem saudade”, coloca Ademilde.

Para a cantora, o talento hoje não é tão valorizado quanto era no passado, já que ele está submetido a outros padrões que em nada tem a ver com música, como os que definem a beleza, por exemplo: “Colocam em evidência aquilo que agrada mais, que é a mulher bonita.” Mas é com orgulho, entretanto, que relata a curiosa chegada de uma cantora japonesa em sua vida: “O nome dela é Yoshymi Katayama. Ela ganhou um disco meu de presente e decidiu vir ao Brasil só para me conhecer”, conta, vendo como quase certa a possibilidade dela, no alto de seus 82 anos, gravarum disco junto a sua fã de origem nipônica — que se prontificou a visitá-la apesar da distância cultural e geográfica existente entre as duas.

A verdade é que alguns shows da dupla já estão confirmados para um futuro próximo. Embora a iniciativa de Yoshymi tenha sido admirável, Ademilde acredita que ainda há muito a se fazer pela música genuinamente brasileira, e acrescenta: “Talvez, se existissem mais cantoras de choro, minha música poderia ser mais divulgada.” Está dado o recado.

Tico-Tico no fubá é um exemplo perfeito do choro clássico, em três partes. Pela animação dos pares que dançavam a música, Zequinha fez o comentário: “até parece tico-tico no farelo…”, por já existir um choro homônimo, de Canhoto, passou a “Tico-Tico no fubá”.

Tico-Tico no Fubá
Zequinha de Abreu

Primeira parte
Um tico-tico só,
Um tico-tico lá,
Está comendo Todo,
todo meu fubá.
Olha, Seu Nicolau,
Que o fubá se vai,
Pego no meu pica-pau
E um tiro sae.
Coitado… Então eu tenho pena
Do susto que levou
E uma cuia se ia,
Mais fubá eu dou.
Alegre já,
Voando, piando,
Meu fubá, meu fubá,
Saltando de lá pra cá.
Segunda Parte (Declamado)
Tico-tico engraçadinho
Que está sempre a piar,
Vá fazer o teu ninho
E terás assim um lar.
Procure uma companheira
Que eu te garanto o fubá,
De papada sempre cheia
Não acharás a vida má.

Terceira Parte
Houve um dia lá
Que ele não voltou,
E seu gostoso fubá
O vento levou.
Triste fiquei,
Quase chorei,
Mas então vi
Logo depois,
Já não eram um,
Mas sim já dois.
Quero contar baixinho
A vida dos dois,
Tiveram seu ninho
E filhotinhos depois.
Todos agora
Pulam ali,
Saltam aqui,
Comendo sempre o fubá
Saltando de lá para cá.

A polca Apanhei-te Cavaquinho, a segunda composição mais gravada de Ernesto Nazareth, perdendo apenas para Odeon, foi composta em 1915 e gravada no mesmo ano pelo grupo O Passos no Choro. A música foi dedicada a Mário Cavaquinho (Mário Álvares da Conceição), um exímio cavaquinista, amigo de Nazareth que, segundo Ary Vasconcelos, inventou o cavaquinho de cinco cordas e a bandurra de 14.

Apanhei-te Cavaquinho
Ernesto Nazaré

Ainda me lembro,
Do meu tempo de criança,
Quando entrava numa dança,
Toda cheia de esperança,
De chinelinho e de trança,
Com Mané e o Zé da França,
Nunca tive na lembrança,
De rever esse chorinho.

E hoje ouvindo,
Neste choro a voz do pinho,
Relembrando o bom tempinho,
Da mamãe e do maninho,
Hoje sou ave sem ninho,
Sem família, sem carinho,
Mas sou bem feliz ouvindo,
O “Apanhei-te Cavaquinho”!

Hoje cantando o “Apanhei-te Cavaquinho”,
Fico louca, fico quente,
Fico como um passarinho,
Sinto vontade de cantar a vida inteira,
Esta vida, eu levo de qualquer maneira,
Ouvindo a flauta, o cavaquinho e o violão,
Eu sinto que o meu coração,
Tem a cadência de um pandeiro,
Esqueço tudo e vou cantando com jeitinho,
Este chorinho,
Que é muito Brasileiro !

Por Luiza Nascimento

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