Domingo Fernandes: Marighella tinha o dom de simplificar as coisas

O lançamento no Brasil de “Marighella”, filme de Wagner Moura inspirado na biografia escrita pelo jornalista Mário Magalhães, ocorrerá em um momento em que, quem for ver o filme, vive um contexto de confronto na sociedade semelhante aquele que Carlos Marighella viveu na década de 60 no país.

 

“As pessoas verão o filme vivendo um contexto de confronto semelhante ao que a gente vivia quando o Marighella estava vivo. Nós não vamos ver o filme como os ingleses ou os franceses. Isso facilita, pois você acaba sendo invadido pelo contexto que o país está vivendo”, diz Domingos Fernandes, ex-guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional, que conviveu e militou junto com Marighella na luta armada contra a ditadura.

 

Militante da ALN no Rio de Janeiro, Jorge – nome de guerra de Domingos Fernandes na luta contra a ditadura – foi preso em 1969, pouco mais de um mês após a morte de Marighella por agentes do DOPS, em São Paulo. Ele foi libertado no ano seguinte, integrando o grupo de 40 presos políticos trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, seqüestrado em 1970. De lá percorreu um longo caminho, passando por Argélia, Cuba, Itália, Chile, Argentina e Portugal até regressar ao Brasil em 1979, com a Anistia. De volta ao Brasil, apoiou Brizola na fundação do PDT e, mais tarde, participou da criação do Partido Verde no país, de onde saiu após o partido ser dominado por um grupo que desvirtuou seus propósitos originais. Agora, prepara-se para voltar a disputar os rumos do PV.

 

Domingos Fernandes esteve com Marighella poucos dias antes do líder da ALN ser morto em São Paulo. Em entrevista concedida por telefone, Fernandes fala sobre como conheceu Marighella, do contexto que marcou a luta armada contra a ditadura e de algumas das principais características do homem e do dirigente político que faz parte da história política do Brasil no século XX. Militante comunista desde a juventude, eleito deputado federal constituinte em 1946, Marighella criou aquela que seria a maior força armada de oposição à ditadura instalada no país após o golpe de 64 contra o governo de João Goulart.

 

Na entrevista, Fernandes aponta a simplicidade e a busca de soluções claras e objetivas como uma das principais qualidades de Marighella. Ele cita o livro Manual do Guerrilheiro Urbano para exemplificar essa característica: “Eu datilografei o manual em um porão da minha casa em Bonsucesso. Eu dava gargalhadas sozinho com algumas passagens. Se você ler o manual verá que ele tem algumas saídas muito simples e geniais sobre coisas complicadas”. E acrescenta: “Ele tinha o dom de simplificar as coisas e torná-las mais acessíveis para você entender, tanto do ponto de vista militar como do ponto de vista político”.

 

 

Quando e em que contexto você conheceu Carlos Marighella?

 

Domingos Fernandes: Em dezembro, completei 73 anos. Com 13 anos de idade eu rompi com a minha família, saí de casa e entrei na Polop (Política Operária). Em 1962, resolvi brigar lá na minha escola, no quarto ano ginasial, contra um grupo do Partido Comunista. Eu me envolvi na política estudantil e acabei virando presidente do grêmio. Na família, a minha mãe era minha guia. Ela tinha vindo de Laguna e era uma mistura de índia xocleng com o povo africano. Meu pai era um português conservador. Ao entrar na Polop tomei conhecimento da existência da esquerda do Partido Comunista que, para mim, era conservador no sentido das coisas que propunha para aquele período.

 

Mais adiante, já depois pelo golpe, perto de 1968, tomei conhecimento da luta interna do Partido Comunista. Entrei no Partido Comunista para rachar, para criar grupos à esquerda. Foi aí que tomei conhecimento da existência do Marighella que era do comitê central do partido em São Paulo. Na época, ele vivia com uma pernambucana que era mãe de dois meninos, um deles colega meu na Escola Técnica Nacional, que reunia uma elite da política estudantil do Rio. Esses dois, Iuri e Alex (já mortos) eram meus amigos. Foi através dela que eu conheci Marighella, em uma reunião na Tijuca onde apareceu. Ele estava vindo de uma reunião da OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade), realizada em Cuba, em 1967. Depois dessa reunião, ele voltou ao Brasil e começou a organizar aquilo que virou a Ação Libertadora Nacional.

 

Inicialmente, a dissidência organizada em torno de Marighella se chamava Agrupamento Comunista de São Paulo. Ele defendia que, no contexto brasileiro de então, não era mais possível fazer luta política sem um componente de luta armada. Marighella tinha voltado da reunião em Cuba já com um desenho do que era possível e do que não era possível fazer. Daquele momento em diante, ele decidiu mandar para Cuba todas as pessoas que ele achava que precisavam de um treinamento militar. Eu me recusei e disse a ele: ‘Olha Preto (que é como chamávamos ele), eu não vou pra Cuba. Servi o exército em 64, ano do golpe, aprendi a atirar, gosto de coisas militares, mas não vou fazer treinamento militar. Meus dois parceiros do Rio foram pra Cuba e acabei sendo preso no final de 69.

 

Há muita mitologia e besteira que se fala sobre Marighella. Ele não foi um herói, no sentido babaca do termo. Ao ser morto, ele estava abrindo uma bolsa de mão que os homens usavam antigamente para tentar pegar o revólver e o cianureto que a gente trocava a cada quinze dias. Ele não queria ser preso e torturado de novo. Sabia que não tinha chance de resistir ali. Ele foi morto no dia 4 de novembro (de 1969). Dois ou três dias antes, encontrei-me com ele no Rio. Ele já sabia que o negócio dos (freis) dominicanos estava bichado.

 

Marighella era uma pessoa muito simples, não tinha frescuras. Era estranho fisicamente, meio grandalhão e usava uma peruca horrível. A careca denunciava muito a fisionomia dele, por mais que só andasse à noite. Era uma figura que não era fácil de disfarçar. Eu me encontrava com ele no Méier, perto da Central do Brasil. A gente se encontrava em esquinas, sempre andando, nunca parados. Os carros da repressão, que chamávamos de “carroção”, circulavam muito pelas ruas na época.

 

Você se encontrou com Marighella poucos dias antes da morte dele, então?

 

Domingos Fernandes: Sim. Não vou te assegurar que foi no dia 1°, mas foram nos primeiros dias de novembro. Como disse, ele sabia que o esquema dos freis dominicanos estava bichado e mandou todo mundo embora do Brasil. Essa militância dos freis dominicanos vinha desde o Congresso da UNE, em Ibiúna, quando foram presos cerca de 900 estudantes. Eles continuaram militando e acabaram se aproximando da ALN via Toledo (Joaquim Câmara Ferreira). A chamada dissidência universitária que, no Rio, formou o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), aqui em São Paulo não formou uma nova organização. A dissidência comandada pelo José Dirceu, antes de ser preso, rachou. Uma parte foi para a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e outra parte veio para a ALN.

 

Havia um debate importante na época. Hoje, como já se passou muito tempo, quase ninguém fala da divergência política que ocorreu entre as organizações que acabaram fazendo luta armada. Essa divergência era o seguinte: o Brasil vive uma etapa onde é possível fomentar o socialismo ou estamos em uma fase anterior, de libertação nacional, onde a luta engloba uma parte muito maior da sociedade. A tese da ALN, onde eu me incluía, era pela etapa da libertação nacional. Fomentou-se uma ideia de que era tudo a mesma coisa, mas não era. Havia uma diferença entre quem pensava que o país vivia uma etapa onde era possível falar de socialismo e quem achava que a etapa era de libertação nacional e o objetivo principal era derrubar a ditadura.

 

Marighella discutiu e brigou com Apolônio de Carvalho quando ele criou o PCBR. Essa discussão está apagada na história, mas era muito acesa na época. Quando você chegava para uma pessoa, tentando recrutá-la para lutar contra a ditadura, e falava que estava construindo o socialismo, era um choque. A palavra “socialismo” ficou caracterizada por uma coisa que envolvia o leste europeu, toda a chamada União Soviética e a China.

 

O que aconteceu contigo depois da morte de Marighella?

 

Domingos Fernandes: O Marighella foi morto no dia 4 de novembro de 1969. Eu fui preso no dia 9 de dezembro do mesmo ano, lá no Rio. Em junho de 1970 aconteceu o seqüestro do embaixador da Alemanha. Eu estava preso na Ilha Grande e fiz parte do grupo de presos políticos trocados pelo embaixador. Fui para a Argélia, mas fiquei pouco tempo lá. A melhor maneira de voltar para o Brasil era ir para Cuba e eu fui pra lá. O Iuri foi pra Cuba na época e me disse: não dá pra você voltar, Jorge (que era o meu nome de guerra). A ALN está um bagaço e você muito queimado. Como eu não queria ficar em Cuba, ele me tirou de lá e fui para a Itália.

 

Depois fui ao Chile para ir para o Peru, governado na época pelo general Alvarado, que era meio progressista. O Partido Comunista Italiano, que estava meio no governo da Itália, tinha um convênio com esse Alvarado. Então, eu cheguei ao Chile com o plano de ir trabalhar em umas comunas agrícolas no Peru que eram apoiadas pelos italianos. Mas como a ALN tinha mais de cem pessoas exiladas no Chile, acabei me envolvendo com isso. Isso foi em 1973. Fiquei no Chile até que veio o golpe contra o Allende. Fui para a embaixada argentina, em Santiago, e o Pinochet acabou dando salvo conduto para que a gente fosse embora para a Argentina. Lá, Perón não quis nos receber como exilados. Ele não queria fazer um confronto direto com a ditadura brasileira. Antes do golpe do Videla, fui embora para Lisboa. Como meu pai era português, eu virei português também. Fiquei em Portugal até voltar para o Brasil, na Anistia, em 1979. Voltei já com o Brizola, participando da fundação do PDT. Era pra ser a refundação do PTB, mas o Golbery acabou dando a sigla para a Ivete Vargas.

 

Qual sua expectativa em relação ao filme de Wagner Moura? Pretende assisti-lo logo?

 

Domingos Fernandes: Sim. Sem pressa, mas eu quero ver. Eu admiro o Wagner Moura. Não quero ir na correria. Esse filme tem que ver com calma, de preferência com outras pessoas com quem possa conversar depois tomando um cafezinho, um chopp ou um vinho. Você nunca percebe tudo sozinho.

 

Como você avalia o significado da produção e exibição deste filme no Brasil, considerando o atual contexto político que o país está vivendo, com a eleição de um presidente de extrema-direita?

 

Domingos Fernandes: O Brasil está vivendo um momento que deve ser contextualizado com o que está acontecendo no planeta. Há momentos que representam verdadeiros solavancos na história, onde as estruturas balançam e as mudanças vão acontecendo de maneira abrupta. 1968 – e eu me considero um meio – foi um momento desses que se reproduziu pelo mundo afora: na França, na China, nos Estados Unidos, no Brasil e assim por diante. Nós estamos vivendo um momento desse. Não adianta achar que isso está acontecendo só no Brasil. Bolsonaro não representa nada de excepcional. Ele não está preparado para ser presidente e sabe disso.

 

Acho ótimo o lançamento desse filme neste momento. As pessoas verão o filme vivendo um contexto de confronto semelhante ao que a gente vivia quando o Marighella estava vivo. Nós não vamos ver o filme como os ingleses ou os franceses. Isso facilita, pois você acaba sendo invadido pelo contexto que o país está vivendo. Ninguém sabe exatamente quanto tempo o Jair vai ficar no governo, mas eu tenho certeza que o Mourão vai acabar assumindo. Ele está muito mais preparado que o Jair para ser presidente da República, não por ser um general mas porque entende mais do assunto.

 

Se você tivesse que destacar uma qualidade do Marighella como liderança política, qual seria?

 

Domingos Fernandes: A simplicidade. O Partido Comunista tem uma histórica recheada de coisas boas e coisas ruins. O que sobrou politicamente do Partido Comunista depois que a Internacional mandou fazer aquela merda em 1935 (a chamada Intentona Comunista), virou um caminho de elite, não no sentido econômico da palavra, mas da luta política. Os dirigentes do Partido Comunista eram muito metidos e o Prestes mais metido que os outros. O Marighella contrariava isso. Quando ele participava das reuniões, era caracterizado como o cara que sempre saía com a solução mais objetiva e mais simples. Isso não era comum. Algumas pessoas, como o Mário Alves (que junto com o Apolônio de Carvalho criaria o PCBR), até o criticavam por isso, dizendo que ele simplificava muito as coisas. A esquerda sempre foi meio intelectualizada e continua sendo. Marighella era a favor de buscar a saída mais simples e objetiva. Se você ler o Manual do Guerrilheiro Urbano verá essa característica presente. Quem datilografou esse manual fui eu.

 

Não sabia disso. Ele entregou o texto manuscrito e você datilografou?

 

Domingos Fernandes: Sim. Eu datilografei o manual em um porão da minha casa em Bonsucesso. Eu dava gargalhadas sozinho com algumas passagens. Se você ler o manual verá que ele tem algumas saídas muito simples e geniais sobre coisas complicadas. Tornar alguém guerrilheiro urbano não é uma tarefa muito simples. Marighella era simples porque fazia política desta maneira. Ele mandou o Joaquim Câmara Ferreira, que era o segundo homem dele, para Cuba porque sabia que podia morrer. Ele não falou isso pra ninguém, mas sei que o mandou para Cuba porque achou que iria morrer. Joaquim Câmara era o grande guerrilheiro da ALN. Contra a ideia de Marighella, ele foi para o Rio fazer o seqüestro do embaixador.

 

Marighella foi contra a ideia de seqüestrar o embaixador americano?

 

Domingos Fernandes: Sim. Ele achava que isso iria acabar com a organização, o que de fato acabou acontecendo. O seqüestro foi feito pela ALN e pelo MR-8. Só que a ALN levou o comandante (Toledo) aqui de São Paulo para chefia a operação no Rio. O Franklin Martins, que planejou a ação e que eu respeito, pode te falar tudo isso que estou te contando. Eles não se sentiam seguros e a ALN do Rio era muito pequena porque Marighella tinha tirado quase todo mundo de lá e enviado para Cuba. A ALN no Rio ficou reduzida a um GTA.

O que era um GTA?

 

Domingos Fernandes: Grupo Tático Armado. A gente fazia banco. Faltava dinheiro e era fácil fazer. A gente sabia que os tesoureiros também roubavam um pouco. A gente levava “x” e eles diziam que tínhamos levado “y”. Então, a gente sabia fazer isso, mas não tinha capacidade de dirigir um sequestro como esse. O Toledo levou para o Rio o Paulo de Tarso, o Mané Cirilo e o Virgílio (Jonas), que comandou o sequestro, realizado no dia 7 de setembro. Quando chegou pra mim a notícia de que o Marighella era contra eu disse que, se pudesse votar, seria a favor. Mas eu não decidia coisa nenhuma, era um dirigente local. E não tinha nenhuma votação. A ALN era muito compartimentada, por decisão dele. Quando ele morreu, despedaçou tudo. Estou contando isso pra te passar um pouco o clima da época. O lado mais “terrorista” da ALN era o Toledo. O Marighella era um dirigente político.

 

Na época, antes de ser preso, eu vivia com uma moça carioca, que fazia banco comigo. Ela era guerrilheira como eu. Um dia eu disse para o Marighella: – Preto, vou ter que desaparecer por uns dias porque vou ter que casar. A família dela está desconfiada e se eu não casar no papel vai criar um problema. Ele recomendou que eu não fizesse isso, pois poderia arrumar um problema maior para o futuro. Eu acabei casando, pois achei que não tinha como não casar naquela situação envolvendo a família dela. Mas ele sempre procurava simplificar.

 

Ele tinha o dom de simplificar as coisas e torná-las mais acessíveis para você entender, tanto do ponto de vista militar como do ponto de vista político. Lembro que, na primeira reunião que fez comigo, lá na Tijuca, ele estava vindo de Paris e me contou tudo o que viu na rua e que iria dar no maio de 68. Ele contava como as pessoas estavam embriagadas por aquela movimentação toda. As pessoas estavam andando pela rua e tomavam a iniciativa de fazer alguma coisa em reação a situações que estavam acontecendo. Eu acho que estamos vivendo um momento muito parecido hoje.

 

 

Fonte: Sul21

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