Na cultura, mesmo com o avanço da barbárie, o pulso ainda pulsa

A independência, a liberdade de expressão e a ideia republicana tentam respirar debaixo da onda de regressão do Brasil de 2019.

Por Jotabê Medeiros, na CartaCapital

Num tempo de guerra ideológica e perseguição aberta às diferenças (sob um discurso de suposta guerra anti-ideológica), os sinais do avanço da barbárie sobre a cultura, com censura, segregação e atos de antirrepublicanismo, já vêm se deixando sentir com imodéstia pelo País.

São muitos casos em progresso. No Rio de Janeiro, o coletivo que realiza a exposição Literatura Exposta acusou o governador Wilson Witzel de censura pela proibição de uma performance programada para acontecer no domingo 13, na Casa França Brasil. O governo recém-empossado alegou “descumprimento do contrato” e das “obrigações estabelecidas” para suspender a apresentação. A performance, do coletivo És Uma Maluca, fazia alusão à ditadura militar dispondo duas mulheres nuas a interagir com a obra A Voz do Ralo É a Voz de Deus (uma composição que coloca 6 mil baratas de plástico em volta da tampa de um bueiro). É notória a simpatia do novo governador pelas ilegalidades cometidas sob a égide do Estado naquele período.

“A arte vai sobreviver aos ignorantes”, desabafou Álvaro Figueiredo, curador da exposição, convicto de que a suspensão foi uma ação do próprio governador ‒ em dezembro, já sob o signo do revisionismo anti-histórico e anticientífico que reina agora, os artistas do coletivo tiveram o áudio de uma obra (que utilizava a voz do presidente Jair Bolsonaro) confiscado. Trocaram o conteúdo por uma receita de bolo, recurso que foi utilizado em jornais como O Estado de S. Paulo durante a censura da ditadura (a performance acabou acontecendo na segunda-feira, na rua, como ato de resistência do grupo).

Em São Paulo, após um saldo de 78 viagens em dois anos como ministro da Cultura do aparelhamento (de um ministério que festejou a própria extinção antes na virada do ano), Sérgio Sá Leitão não decepcionou ao assumir a Secretaria da Cultura em São Paulo. Mal empossado, mandou cancelar audiência pública em que debateria a preservação do entorno do Teatro Oficina (atualmente em cartaz com a montagem de Roda Viva, cujos atores da versão de 1968 foram espancados pelo Comando de Caça aos Comunistas), uma causa pela qual os artistas e moradores do bairro se batem há mais de uma década. Sá Leitão, um dos dez ex-servidores de Temer convocados para o secretariado de João Doria, chamou o debate público, ao qual parece demonstrar alergia, de “gesto procrastinatório”. A ausência de diálogo foi substituída pela total rejeição ao diálogo: na sexta, dia 11, reunião do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) aprovou, por 5 votos contra 1, a construção das torres que o Grupo Silvio Santos almeja no entorno do Oficina, um ato predatório da paisagem urbana.

Artistas protestam contra a censura simulando o que fariam na obra ‘A voz do ralo é da voz de Deus”,
que seria exposta na Casa França Brasil, mas foi censurada pelo governador do Rio de Janeiro

A sequência desses atos de usura cultural tem raízes na nova geografia do poder. Acusado por Philipp Lichterbeck, na revista alemã Deutsche Welle, de encabeçar uma onda de anti-intelectualismo no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro resolveu fazer uma espécie de confissão pública de sua disposição: em vez de argumentar contrariamente, partiu para cima de Fernando Haddad, seu adversário nas eleições de 2018, como se ainda estivesse no palanque. Haddad aproveitou para tirar onda com o novo mandatário, e de fato o artigo de Lichterbeck é devastador para o regime que ora se instala. “Está na moda um anti-intelectualismo horrendo, ‘alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento’, segundo dizia o escritor Isaac Asimov”, escreveu o alemão.

O clima está tão propício à ignorância que muitos dos artistas que já se bateram ardentemente por avanços em legislações de apoio à cultura e mecanismos de democratização de acesso hoje preferem depositar as esperanças em outros sistemas de gestão que não o Estado brasileiro. “Só posso dizer o seguinte: em vista da qualidade dos ministros deste governo, é preferível que a cultura não tenha ministério”, disse, ao jornal El País, o cantor Chico Buarque de Hollanda.

No plano internacional, chama atenção o perfil de esquizofrenia cultural do bolsonarismo no poder. Os discursos e pronunciamentos do novo chanceler, Ernesto Araújo, castigam tanto os ouvidos com suas demonstrações de pré-coerência que suscitaram até um artigo debochado do americano Benjamin Moser (autor das biografias Clarice, publicada pela Companhia das Letras, e Susan Sontag: Sua vida e obra, em vias de sair pela mesma editora).

O governador Witzel, que não hesitou em censurar performance artística, revela o caráter ideológico e persecutório dos novos tempos. Medeiros Pires, com atuação reconhecida em museologia, assume a estrutura que restou do Ministério da Cultura, cujo extinção foi celebrada pelo antecessor, Sá Leitão.

Moser destacou uma frase de Araújo (“desconstrução pós-moderna avant la lettre do sujeito humano e negação da realidade do pensamento”) e sapecou: “Sabe aquele estudante de pós-graduação que encurrala a menina na festa falando de Derrida ou Baudrillard? Pois é”. Também destilou sarcasmo em cima da declaração pedante “não gosto de Wittgenstein” do chanceler. “Sabe aquele homem que, diante de um Picasso, diz que sua filha de 4 anos poderia ter feito melhor?”

Extinto o Ministério da Cultura pelo novo governo, no último dia 2 de janeiro um gaúcho de Pedro Osório de 56 anos, José Henrique Medeiros Pires, assumiu a estrutura que deixaram no lugar, a Secretaria Especial de Cultura. É cedo para avaliar as qualidades ou defeitos de Medeiros Pires, mas pinta uma esperança de que ele não partilhe das mesmas ansiedades obscurantistas dos colegas.

Graduado em Estudos Sociais pelo Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com especialização pela Universidade de Salamanca, na Espanha, Medeiros Pires tem larga experiência na gestão de museus, embora toda ela desenvolvida em Pelotas: foi diretor do Museu da Baronesa, do Teatro Sete de Abril (fabuloso edifício de 184 anos, hoje fechado) e do Instituto João Simões Lopes Neto. Integrou por três vezes o Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Sul.

Justamente por causa de sua propalada expertise em museus, Medeiros Pires afirma que tem experiência suficiente para fazer um trabalho consistente nessa área. “Tenho experiência nisso, sei que dá para fazer.” Foi escolhido, para presidir o Instituto Brasileiro de Museus (cuja extinção foi preconizada pelo governo de Michel Temer), Paulo Cesar Brasil do Amaral, que dirigiu o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs). Sua principal incumbência será “dotar os museus brasileiros das melhores condições para prevenção e combate a incêndio”.

Medeiros Pires acha que consegue flanar acima da conflagração, cometendo o erro de acreditar que há forças equilibradas e republicanas duelando. “Eu consegui passar essa campanha eleitoral sem brigar com ninguém. Não tenho Facebook. O máximo que me permito é o WhatsApp. Em grupos de família, vi brigas, mas não me meti”, ele afirmou, em entrevista ao jornal Zero Hora.

O secretário faz uma defesa bem articulada da Lei Rouanet (“o melhor instrumento de fomento que existe”) e sua efetividade econômica. “Quando as pessoas veem um artista famoso no palco, não dimensionam o custo que é colocar a estrutura em torno dele em funcionamento. Ele terá o melhor guitarrista, baterista, iluminador… Ou seja, gera empregos dentro de uma cadeia intensa, desde o caminhoneiro até quem serve a refeição.”

Na contramão do que fez Sérgio Sá Leitão em seu período viajandão no Ministério da Cultura, Medeiros Pires fala em diminuir o teto de renúncia fiscal em 20% ou 30%. Ele lembrou seus próprios percalços tentando conseguir um patrocinador para um projeto. “A Feira do Livro de Porto Alegre sempre teve um patrocínio forte em função da Lei Rouanet. Eu conhecia alguns patrocinadores, então muitas vezes bati na porta deles com projeto aprovado, pedindo 50 mil reais para a Feira do Livro de Pelotas, mas não conseguia. Espero que, estando agora do lado de cá da mesa, consiga fazer editais que permitam que essas pequenas feiras, que fomentam a leitura e mantêm uma livraria aberta no interior, possam ter financiamento.”

Medeiros Pires passa a impressão de ter se preparado bem para responder às questões relativas ao cipoal da área cultural, mas isso não é apenas impressão: na quarta, dia 9, por acidente, o governo divulgou um vídeo com sessões de “media training” do secretário de Cultura gravado no dia 2. O governo não demorou a retirar o vídeo de circulação. Nele, o novo chefe da cultura estatal é sabatinado sobre diversos assuntos, o que incluiu até o audiovisual, setor mais técnico e azeitado da máquina pública. Também nisso ele, de novo surpreendentemente, diverge da postura entreguista do seu antecessor.

“Todo mundo que está produzindo dentro do mercado nacional está dentro de uma cadeia produtiva. Empresas (internacionais) colocam material videográfico e fonográfico à disposição, que o usuário paga com cartão de crédito internacional, e elas não contribuem com absolutamente nada no país. Fica desigual”, argumentou ao Zero Hora. “Essa discussão pode representar a sobrevivência de muitos produtores.”

Jotabê Medeiros é jornalista e escritor.

Fonte: CartaCapital

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