Fake news modernista: foto “oficial” da Semana de 22 foi feita em 1924

Tida por alguns como imagem-ícone da Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922, a suposta “foto oficial” não foi feita no célebre festival modernista. Segundo o professor Carlos Augusto Calil, a histórica fotografia foi produzida, na realidade, em março de 1924, durante almoço em homenagem ao empresário Paulo Prado. Em artigo para a Folha de S.Paulo, Calil esclarece a confusão quase centenária e combate, assim, a involuntária “fake news” modernista. Confira o ensaio.

 

Foto tida como ícone da Semana de 1922 foi feita em 1924

 

Por Carlos Augusto Calil*

 

Uma fotografia ficou associada à Semana de Arte Moderna, o festival de arte que teve lugar no Theatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1922. O apelo da fotografia não havia chegado ainda aos modernistas e nem aos jornais paulistanos. Mário de Andrade seria o único, dentre eles, a se interessar pela fotografia e a praticá-la com insuspeito talento nas viagens que empreendeu ao Norte e Nordeste, a partir de 1927.

 

A imagem que o leitor tem diante dos olhos é a foto oficial da Semana de 22. Publicada em 1970, em Artes Plásticas na Semana de 22, de Aracy Amaral, com a legenda “Ao finalizar a Semana, no almoço realizado no antigo Hotel Terminus”, passou à história do modernismo. Nestes termos, é divulgada até hoje.

 

Ao observador atento incomodavam as ausências de alguns dos mais destacados participantes da Semana: Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Ronald de Carvalho e a presença improvável de Rubens Borba de Moraes, que embora tivesse contribuído na preparação da Semana, a ela não comparecera, pois ficara retido na fazenda da família, recuperando-se de uma infecção de tifo.

 

Era um almoço exclusivamente masculino e por isso não se teria convidado nem Anita Malfatti nem Guiomar Novais? Outros ficaram de fora, ao mesmo tempo em que gente estranha à Semana aí encontrou lugar. Durante anos apontou-se entre os convivas o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, hipótese cujo anacronismo – ele é da segunda geração modernista – não escapou ao poeta e crítico de literatura da Folha Nogueira Moutinho.

 

Hoje estão identificados os participantes do almoço realizado no Hotel Terminus, da esquerda para a direita, de cima para baixo: o jornalista italiano Francesco Pettinati, Flamínio Ferreira, René Thiollier; (abaixo) Manuel Bandeira, tuberculoso, segura um improvável cachimbo; Sampaio Vidal, que participaria da fundação do Partido Democrático; Paulo Prado, Graça Aranha, Manuel Villaboim, que trabalhava na Cia. Prado Chaves, cujo presidente era Paulo Prado; (abaixo) Couto de Barros, Mário de Andrade, Cândido Mota Filho, Gofredo da Silva Teles, genro de Olívia Penteado; (sentados) Rubens Borba de Moraes, Luís Aranha, Tácito de Almeida e, à frente, Oswald de Andrade.

 

 

Do centro, no alto, domina a figura imponente de Paulo Prado, que segura um cigarro. No centro, agachado, no primeiro plano, avulta Oswald de Andrade, que fuma um charuto. Diz ele, num balanço do modernismo publicado em 1954: “Nunca será demais exaltar uma figura central do movimento modernista. Foi Paulo Prado. A sua modéstia de fidalgo, a sua dupla personalidade de escritor e comerciante, o fato de ter aparecido tarde em nossas letras e mais possíveis complexos fizeram com que Paulo Prado nunca quisesse o primeiro plano”.

 

A foto revela naturalmente um eixo, de Prado no centro a Oswald, em primeiro plano. Há uma afinidade entre ambos que extrapola a adesão ao tabagismo e a elegância apurada.

 

Numa foto supostamente tirada “ao finalizar a Semana”, intrigava a presença rara de Manuel Bandeira em São Paulo, justamente ele que não estivera na Semana. No Municipal, o seu poema Os Sapos fora lido por Ronald de Carvalho. Na correspondência trocada com Mário de Andrade, pode-se acompanhar a longa sedução para atraí-lo à Pauliceia.

 

Em carta enviada de Petrópolis, em março de 1923, Bandeira cogita ir a São Paulo: “O [Ribeiro] Couto insiste para que eu vá passar uns tempos em Campos [do Jordão]. A viagem apavora-me um pouco. Se for até lá, é bem provável que aproveite o ensejo para dar um pulo a São Paulo, onde não vou desde 1904. Era ainda o São Paulo do Largo de… – não é que me esqueceu o nome? – ainda triangular, com a velha igreja do Rosário, a Sé Velha com, ao lado, umas casinhas coloniais que nunca mais esqueci, a rua de S. João e o mercado…”.

 

Manuel Bandeira nem sequer conhecia o Theatro Municipal, inaugurado em 1911, cuja obra fora iniciada pelo prefeito Antônio Prado, pai de Paulo Prado. Mário responde, em 22 de abril: “São Paulo corre cheia de trabalhos. E à tua espera. É indispensável que venhas a São Paulo, que desconheces”.

 

Em 31 de maio, Bandeira avisa: “De vida material: renunciei a ir a Campos do Jordão e a São Paulo nesta quadra fria”. Mário retruca, desapontado, em 7 de junho: “Mas não posso me conformar com a tua desistência. Precisas conhecer São Paulo. Não é linda. É curiosa”.

 

Em 17 de abril de 1924, escreve Bandeira: “Resta o caso do Paulo Prado. Nesse ponto falo sério. Fui à casa dele para ouvir a leitura do livro de Oswaldo. Lá o René [Thiollier] convidou-me a aderir ao almoço, aliás era também de homenagem ao Oswaldo a princípio, e isso em grupo onde estava a amiga do Paulo [Marinette, mulher dele]. Eu não podia recusar. Se o convite tivesse sido feito com mais discrição, é provável que não teria aquiescido”.

 

A viagem de Manuel Bandeira a São Paulo se deu de fato em 1924, em plena repercussão do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, publicado no Rio, no Correio da Manhã, em 18 de março. Em sua carta, Bandeira deixa transparecer certa reserva a Paulo Prado, que ele mal conhecia e cuja ambiguidade de intelectual e homem de negócios jamais compreendeu. E nem Gilberto Freyre, que o comparava à personagem dupla de Robert Louis Stevenson, Dr. Jekyll e Mr. Hyde.

 

Bandeira tivera a edição de um livro recusada pela editora de Monteiro Lobato e se insurgira contra ele e seu sócio na Revista do Brasil, Paulo Prado. “Há na empresa do Lobato capitais de Paulo Prado. Eles devem sair! Ou então o Paulo Prado saia do meio de nós! Ou então sairei eu do meio de vocês e volto ao meu perau de cururu.”

 

Em Andorinha, Andorinha, de 1966, Bandeira ainda mantém vivo o ressentimento: “Paulo Prado faz a Semana de Arte Moderna, aceita almoço dos klaxistas e, rico, deixa morrer a Klaxon, e sócio da casa editora de Vasco Porcalho & Cia, permite que eu e Mário de Andrade sejamos escorraçados pela firma em favor de parnasianos e caboclistas”.

 

O almoço no Hotel Terminus era homenagem do grupo da revista Klaxon, o que explica o time que se apresenta bem atrás de Oswald de Andrade, composto de Couto de Barros, Mário de Andrade, Cândido Mota Filho, Rubens Borba de Moraes, Luís Aranha, Tácito de Almeida. O irmão, Guilherme de Almeida, não podia mesmo estar presente, pois havia se casado em 1923 e mudado para o Rio de Janeiro.

 

Um texto raro de Mário de Andrade, uma de suas Crônicas de Malazarte, confirma a natureza do evento, a que ele acrescenta pormenores saborosos:

 

 

“Pois não: Paulo Prado, como toda pessoa inteligente, é curioso. E fácil. Modernizou-se rápido. Aliás já lhe devíamos o ter sido o mais seguro apoio na organização da Semana da Arte Moderna. E não está sozinho. Muita gente aceita já sem arrepios nem medo de pecar os corpos de Brecheret e as melodias de Villa-Lobos”.

 

“Belazarte? Pega o chapéu. É hora do almoço a Paulo Prado. E fomos. Reunidos pela fidalga energia de René Thiollier já muitos do grupo se dispersavam pelos salões do Terminus. Malazarte fazia pândegas de morrer de rir. Foi ele que pronunciou a ‘Bateria de petardos festivos para comemorar a entrada de Paulo Prado na guerra’.”

 

“Senhores: Isto é um jeito gracioso e dadaísta de dizer que a Oswaldo de Andrade devemos a definitiva camaradagem de Paulo Prado; por cuja glória comemos juntos nesta quarta-feira. Juntos integralmente, palavra! pois que as figuras de Graça Aranha e de Manuel embandeiram esta comida com o desejado apoio de Mem de Sá.”

 

“Paulo Prado é um brasileiro que traz o mundo na mão. Paulo Prado respondeu. Contou como lhe foi difícil conquistar a mocidade que hoje tem. E deu a receita dessa conquista: – Consiste ela, disse, na sábia e moderada dosagem dos componentes seguintes: cultura física, banho frio, futurismo, Carnaval do Rio, alegria, e convivência com o entusiasmo de Graça Aranha. E a este ergueu o brinde de honra. Merecidíssimo.”

 

O almoço em homenagem a Paulo Prado nos salões do Hotel Terminus, que ficava à rua Brigadeiro Tobias, esquina com Washington Luís, ocorreu numa quarta-feira, possivelmente em 12 ou 19 de março de 1924.

 

O ano de 1924 foi particularmente fecundo para Oswald de Andrade. Em fevereiro, e durante seis meses, ele recebeu o escritor Blaise Cendrars, com quem estabeleceu franca camaradagem. Viajou com ele e o grupo misto de artistas e gente de sociedade para o Carnaval do Rio; em seguida visitaram as cidades históricas de Minas Gerais, durante a Semana Santa, naquela excursão que significou a sua “descoberta do Brasil”.

 

Em 1924, a relação afetiva e artística com Tarsila do Amaral se desenvolveu com vantagens para ambos. E Oswald viu consolidar sua aliança com Paulo Prado, a quem dedicou Memórias Sentimentais de João Miramar; Prado avalizaria sua experiência Pau-Brasil, com um prefácio que se tornou referência na primeira fase do modernismo.

 

Segundo Mário da Silva Brito, os modernistas aspiravam “exportar uma imagem do Brasil atualizado, ciente e praticante de todas as conquistas intelectuais, culturais, científicas e artísticas já alcançadas em outros quadrantes do globo”.

 

Paulo Prado, o maior exportador de café, reconhecia o programa do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de exportação cultural e de trocas simbólicas. Deu a Oswald um certificado de origem, associando-o ao grupo de Joaquim Nabuco, que, como ele, havia descoberto a própria terra em Paris, “o umbigo do mundo”.

 

A Prado não passava despercebida a glosa de Oswald das leituras históricas que ele estimulava no grupo dos almoços em sua casa. Estava imbuído de apoiar as edições dos textos raros que Capistrano de Abreu garimpava e o instava a comprar ou mandar copiar para publicação.

 

Num editorial da Revista do Brasil, de abril de 1924, Paulo Prado se detém sobre o nosso maior anacronismo: o mal literário. Ataca a dependência cultural de um Portugal do século 18 e de uma França do 19. Denuncia nossa letargia dominada pela literatura retórica do padre Vieira e de Rui Barbosa.

 

Enquanto isso, um país autêntico se engendrava, pela contribuição “milionária” de imigrantes, tecnologias a absorver, população miscigenada, paisagens de mau gosto, “toda a vida desordenada da terra nova e rica, em plena puberdade ardente, oferecendo-se à fecundação do primeiro desejo…”.

 

A metáfora é de gosto arriscado; alude ao princípio da colonização, por meio de uma erotização da história. Antecipa o partido adotado por Prado em Retrato do Brasil, que tanta polêmica suscitaria em 1928. Mas o apelo à realidade é candente – e urgente: “Ignoramos e desprezamos o espetáculo vivo da nossa terra e da nossa raça: pouquíssimos vão procurar fatos, temas e inspirações nos aspectos do Brasil de hoje, adolescente e inquieto”.

 

Ao cabo do breve texto de combate, Paulo Prado anuncia, não sem ambiguidade, o antídoto – e a sequência – do “mal literário”, a poesia pau-brasil, de um dos “ases do ultramodernismo nacional”. Esse reconhecimento precoce sucede imediatamente a publicação do Manifesto da Poesia Pau-Brasil e sela a aliança com Oswald. Eis o ambiente cultural em que se deu o almoço do Hotel Terminus.

 

A personalidade de Paulo Prado é emblemática do modernismo. Encarna a transição de duas gerações: a de Nabuco e a de Oswald. Na dialética entre tradição e modernidade, projeta o modernismo para além do tempo heroico da destruição saneadora e da fronteira paulista. Cariocas e pernambucanos reticentes encontravam um interlocutor generoso no mecenas da Semana.

 

* Carlos Augusto Calil, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, foi curador da exposição e autor do site Morada do Coração Perdido, sobre a casa de Mário de Andrade. Este é um trecho de um ensaio que constará da antologia Semana de 22 – Olhares Críticos, a ser lançada pelas Edições Sesc em 2020.

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