TROVA E A SUA ORIGEM PORTUGUESA

 

As trovas, essas, como ficou dito, são quadras soltas e anônimas, geralmente de origem portuguesa, ou moldadas pelas portuguesas. Não são exclusivamente roceiras, correm um pouco por toda parte; mas o caipira é que principalmente as conserva; do meio dos caipiras é que, em regra, elas extravasam.

Distinto escritor, notando a semelhança que existe entre de muitas das nossas quadrinhas e outras contidas em coletâneas portuguesas, aventou a possibilidade de que não fossemos só nós a importá-las, mas também tivéssemos mandado algumas para Portugal. Algumas, é possível, entre os muitos milhares de quadras que por aí se repetem; mas tudo faz crer que tais casos sejam excepcionais, que a regra geral seja a proveniência portuguesa, com maiores ou menores desfigurações e adaptações.

As trovas correntes no Brasil, ainda muitas daquelas que parecem levar, em grande relevo, sinais de genuíno brasileirismo, são compostas nos moldes originais das portuguesas. A nossa poesia, como já ficou dito, é a moda. A moda é a brasileirinha filha e neta de brasileiros, harmônica, integrada na paisagem: a trova é a menina lusitana de arrecadas e tamanquinhos, ou a mestiça ainda muito saída ao pai.

Em primeiro lugar, vejamos a forma dessas pequeninas composições. Constam geralmente de quatro versos de sete sílabas, rimando o segundo com o quarto, e quasi sempre se dividem, quer quanto ao ritmo, quer quanto a idéia e quanto a estrutura oracional, em duas ametades destacadas:

Passarinho triste canta,
triste deve de cantar;
quem tem seu amor ausente
o seu alívio é chorar.

Saudade, terna saudade
flor da minha simpatia
tú és a cópia fiel
da minha melancolia.

Vou-me embora, vou-me embora
Segunda-feira que vem;
quem não me conhece chora,
que fará quem me quer bem.

Estas as características gerais da trova portuguesa; estas as características gerais da nossa, quanto a forma.

Freqüentemente a primeira das duas ametades de uma quadrinha não têm relação lógica com a segunda, resolvendo-se em puro enchimento.

Lá do céu caiu um cravo,
pintadinho de nobreza;
quem quiser casar comigo,
não repare na pobreza.

Idêntico fenômeno se observa em numerosas trovas portuguesas, como estas;

A fita do teu cabelo
dá o nó, não chega a laço;
não faças conta comigo,
que eu contigo não a faço.

Na rua do Patrocínio,
há uma cruz, lá no cimo;
procure a mulher bonita
quem quiser ter bom arrimo.

As nossas quadrinhas, a cada passo, se firmam, inicialmente, em certos versos muito repetidos, com ligeiras variantes, e que são umas espécies de muletas, ou trampolins:

Fui andando p’rum caminho…

Atirei um limão verde…

No alto daquele morro…

Eu sou aquele que disse…

Menina, minha menina…

Vai-te, carta venturosa…

Estas muletas todas se encontram no cancioneiro lusitano. Também lá se encontram muitos temas, muitas imagens, muitas comparações, versos, expressões, muitos nomes próprios que se repetem a todo instante nas nossas trovas. A propósito, é interessante notar a extraordinária freqüência com que surgem, aqui, certo nomes de plantas e flores, notadamente alecrim, manjericão, limoeiro, rosa, cravo, mangerona, flora esta que predomina visivelmente nas trovas portuguesas.

Às vezes, uma quadrinha das nossas parece bem nossa, perece puro produto do nosso chão, tal qual a mandioca ou o juá bravo. Assim esta:

Quem me dera ser tucano,
um tucano araçari,
pra eu entrar no teu peito
e pra nunca mais sair.

Tudo nesta quadra está a sugerir proveniência brasílica. Entretanto, reparando bem, verifica-se facilmente o estreito parentesco existente entre esses versos e estes outros, do cancioneiro português:

Quisera ser como a hera
pela parede subir,
para chegar à janela
do teu quarto de dormir.

Quem me dera ser a pomba,
pombinha lá do sertão,
para ir fazer o meu ninho
na palma da tua mão.

A quadra brasileira, com a sua linguagem tão nacional e com o seu nacionalíssimo tucano araçari, foi vasada inteirinha na forma de muitas outras de Portugal.

Outro exemplo. Que há mais brasileiro do que esta quadra?

Me chamou de quatro-paus,
quatro-paus não quero ser:
quatro-paus padece muito
e eu não quero padecer.

Pois bem. Escutai agora esta, colhida do livro das Mil trovas portuguesas:

Chamaste-me pera parda,
pera parda quero ser;
lá virá o mês de agosto,
em que me queiras comer.

Até aqui temos visto exemplos de semelhanças parciais. São bastante significativas, mas não são as que existem. Uma grande quantidade de trovas aqui repetidas a cada passo, por toda a parte e há muito tempo, são importadas da Europa e conservam-se tais quais, – não se levando em conta ligeiríssimas variantes de palavras, que podem muito bem provir igualmente da mesma origem, pois todas as quadras, tanto lá como cá, tem grande número de variantes.

Eu poderia citar-vos uma fieira destas imigradas que tão bem se nacionalizaram, traduzidas em dialeto, mas, para não me alongar, citarei apenas uma:

Já te dei meu coração
e sua chave de abrir;
não tenho mais que lhe dar,
nem você o que pedir.

A forma transatlântica é esta (com variantes):

Toma lá meu coração
e a chave de o abrir;
não tenho mais que te dar,
nem tu mais que me pedir.

O nosso povo não fez mais que introduzir leves modificações de linguagem, adaptar convenientemente a fonética e a construção gramatical, passando uma lima sobre as ligeiras arestas lusitanas da quadrinha importada.

Muita vez, nem essas arestas são eliminadas. Tenho no meu arquivo quadrinhas colhidas no coração do estado de São Paulo, numa das regiões mais genuínas e tradicionalmente paulistas – a região de Itu, Porto Feliz, Capivari, Piracicaba e Tietê – nas quais se nos deparam até lusitanos completamente desusados da linguagem da terra. Exemplos:

Caninha verde,
cana do canavial,
tenho glória de te ver,
pena de não te lograr.

Caninha verde,
cana verde, ó ricocó;
pra dançar a cana verde,
as meninas do Grijó

Hei de pegar nos meus olhos
e hei de mandar para França;
olhos que vêem e não logram,
bem é que vão de mudança.

(AMARAL, Amadeu.)

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