A fotografia ativista de Claudia Andujar

Quando Claudia Andujar chegou ao Brasil, aos 24 anos, estava tentando se encontrar, após uma trajetória marcada pela dor. Nascida na Suíça e criada na fronteira entre a Romênia e a Hungria, perdeu toda a família paterna, de origem judia, nos campos de concentração nazista. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, emigrou para os Estados Unidos, onde começou a se interessar por pintura e fotografia. Em 1955, decidiu se estabelecer em São Paulo, onde já vivia sua mãe e, como uma forma de establecer contato com a população que a acolheu, já que não dominava o português, começou a fotografar.

 

Esta fase inicial da carreira da fotógrafa será relembrada na retrospectiva Claudia Andujar, No Lugar do Outro, que abre ao público a partir deste sábado (25/07), no Instituto Moreira Salles. São reportagens fotográficas e ensaios pessoais, que incluem desde os registros documentais em preto e branco até a experimentação gráfica colorida do final dos anos 1960 e começo dos anos 1970. Na abertura da mostra acontecerá, a partir das 16h, uma visita guiada com o curador, Thyago Nogueira, e a artista, de 84 anos.

 

“Nos últimos anos, Claudia ficou muito conhecida pelo trabalho que desenvolveu com os índios ianomâmi, não só relacionado à fotografia, mas de proteção. A ideia da exposição é mostrar um período anterior, desde a chegada ao Brasil até o começo dos anos 1970, quando ela se envolve com a questão indígena. É um período muito produtivo e rico da carreira dela, que tinha ficado, até então, esquecido. No fundo, é um momento de amadurecimento dela como artista e como fotógrafa”, esclarece Nogueira.

 

Núcleos temáticos

 

A exposição, fruto de dois anos de pesquisa, está dividida em quatro núcleos independentes que tratam de momentos centrais do período em questão. O primeiro deles é intitulado Famílias Brasileiras, feito entre 1962 e 1964, quando a fotógrafa registrou o cotidiano de quatro famílias de contextos sociais distintos, a fim de tentar entender como viviam os brasileiros: uma baiana, dona de uma próspera fazenda de cacau; outra paulista de classe média; uma terceira, de pescadores caiçaras isolada em uma praia de Ubatuba, em São Paulo, e, por fim, uma mineira religiosa. A intenção da fotógrafa era publicar o trabalho em uma revista, mas o perfil diverso do conjunto não interessou à publicação.

 

“É o primeiro grande projeto feito no Brasil. Claudia escolhe quatro famílias bem variadas e resolve morar com elas, quando possível, para fotografar seu cotidiano. Consegue uma aproximação muito interessante, fazendo com que as famílias a recebam dentro do núcleo, completamente à vontade para documentar essa intimidade”, diz o curador, que defende a ideia da fotografia como uma ferramenta de autoconhecimento. “Claudia perdeu suas raízes e precisava se conectar com um novo contexto e uma nova sociedade para tentar entender quem ela era. Ela abraça a fotografia com esse sentido, de formar laços com um país que não conhecia, com uma língua e uma cultura diferentes das suas”, completa.

 

O segundo núcleo é formado por reportagens desenvolvidas para a revista Realidade, criada em 1966 e considerada um marco da imprensa nacional pela qualidade das matérias e pelo time de fotógrafos que conseguiu reunir, entre eles a própria Claudia, que trabalhou lá até 1971, Maureen Bisilliat, David Drew Zingg e George Love, seu ex-marido. Nesse período, a fotógrafa registrou situações polêmicas, como as operações do médico-espírita Zé Arigó, em Congonhas do Campo, e o “trem baiano”, que levava imigrantes desempregados em São Paulo de volta a seus estados natais. Além das reportagens, ela também desenvolveu ensaios fotográficos para ilustrar matérias da revista, como uma série sobre relacionamentos homossexuais e outra sobre a natureza dos pesadelos.

 

Nogueira destaca a liberdade de criação que a fotógrafa teve nessa época. “Nessa revista de pautas ousadas para o período da ditadura militar, Claudia teve oportunidade de desenvolver coisas próprias, podia sugerir pautas e olhar para grupos que estavam marginalizados, tentando se identificar com eles e mostrar como era seu cotidiano. É o olhar dela jornalístico, dentro de um contexto em que ela tinha muito liberdade de produção e criação”.

 

O terceiro núcleo é formado por três ensaios experimentais que Claudia desenvolveu em São Paulo a partir de seu interesse pela cidade onde se estabeleceu e pelo corpo humano. Fazem parte desse núcleo a série sobre a Rua Direita, os nus da série A Sônia e fotos aéreas tiradas com filme infravermelho. Para o curador, nesta parte da exposição a fotógrafa “retrata uma dualidade entre o habitante e aquela cidade monumental, também com uma leitura em que experimenta várias técnicas fotográficas, como mudança de pontos de vista e sobreposição de imagens”.

 

O quarto e último núcleo da mostra contém fotografias de natureza feitas durante as primeiras viagens à região da Amazônia, no começo dos anos 1970, especialmente ao longo do rio Jari, no Pará, e em Roraima. “Nesse momento, ela já havia desenvolvido uma produção artística e uma poética muito próprias. Ao encontrar essa mata, ela fica arrebatada por sua grandiosidade. Era um lugar quase transcendente, com uma certa visão mística. Claudia fotografa não com uma intenção puramente descritiva, e sim experimental, de tentar simular, evocar toda a grandiosidade, através de uma relação um pouco religiosa, relacionada à criação do mundo, da terra e de um lugar de comunhão das pessoas. São imagens bem experimentais, em que ela usa filtros, exposição e infravermelho, por exemplo”, afirma Nogueira.

 

 

Divisor de águas

 

Em 1971, enquanto trabalhava numa edição especial da revista Realidade dedicada à Amazônia, Claudia entrou em contato com os índios ianomâmi pela primeira vez. A partir de então, transformou a proteção deles e de sua cultura em missão de vida, indo viver entre Roraima e Amazonas em tempo integral, onde ficou até 1978, quando foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional pelo regime militar, sendo obrigada a voltar para São Paulo. Seu trabalho como fotógrafa e sua atividade política foram fundamentais para a demarcação de uma área indígena ianomâmi, em 1992.

 

Durante os anos que se seguiram, a produção de Claudia ligada aos índios se sobrepôs ao extenso trabalho feito nas décadas anteriores, que agora começa a ser retomado: além da exposição no IMS, a fotógrafa será lembrada pelo Instituto Inhotim, em Minas Gerais, que constrói, há quatro anos, um pavilhão para abrigar cerca de 500 imagens de diferentes períodos da carreira de Claudia. A inauguração do espaço está prevista para 26 de novembro.

 

Para Nogueira, a importância do trabalho da fotógrafa reside no fato dela utilizar a fotografia não só como um instrumento de registro, mas também para se conectar com as pessoas. “Ela não é uma fotógrafa voyer, que chega, fica bisbilhotando uma coisa de cima e observando como as pessoas se comportam, de uma maneira distante. Ela realmente se coloca na mesma posição daquelas pessoas e tenta criar uma empatia muito direta, frontal e horizontal. Do ponto de vista da fotografia, acho que ela fez uma combinação  muito rica entre uma visão humanista profunda, engajada no sentido de preocupação com as pessoas, e de conexão com o outro e com o que é diferente, com uma experimentação formal muito ousada para a época”, conclui.

 

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